Um partido castrado

Nestes dias, Seguro mostrou a sua aptidão maior: defender-se a si e aos seus, mesmo que isso signifique incapacitar o PS para uns bons quatro meses, no meio de um agravar da situação política nacional.

Há um rodriguinho na nossa política caseira, um de muitos e muitos que proliferam por todo o lado, que diz que os militantes e simpatizantes dos partidos não se podem “imiscuir”, “pronunciar”, “interferir”, na vida interna dos outros partidos. Claro que, dito isto, em tom respeitoso e pomposo, ninguém deixa em qualquer circunstância de “comentar”, “imiscuir-se”, etc., etc., na vida interna dos outros partidos.

Claro que há muitas maneiras de se “interferir”, muitas das quais são do domínio do puro ataque político, sem dimensão e paupérrimas do ponto de vista argumentativo, outras do género bíblico, como na frase de Jesus citada em vários evangelhos: “Por que vês o argueiro no olho de teu irmão, porém não reparas na trave que tens no teu?"

O que acontece num partido como o PS é relevante para o debate político em Portugal, e deve ser discutido, como é absolutamente normal numa democracia. É igualmente normal, e custa-me ter de repetir estes truísmos habituais, que pessoas que não são do PS manifestem preferências, quer pela positiva, quer pela negativa, pelos diferentes candidatos. Tal aconteceu ainda há pouco tempo no PSD quando, de Mário Soares a Baptista-Bastos, havia um movimento de simpatia por Passos Coelho, de que presumo muitos nem se queiram lembrar hoje. Como é natural, esse movimento de simpatia foi vantajoso eleitoralmente para Passos Coelho, como no passado o apoio de muitos sectores ligados a interesses económicos e à banca ajudou, e muito, José Sócrates, sem ser propriamente socialista. Santana Lopes também teve apoios nos meios “culturais” mediáticos, que, à luz do que aconteceu depois, parecem bem estranhos.

Posso não gostar, quando as minhas escolhas são outras, e posso suspeitar de algum interesse próprio em certos apoios, mas tenho de admitir que é normal. A perda de valor das distinções programáticas e ideológicas, a favor da personalização e do protagonismo das lideranças, é um fenómeno típico destes tempos mediáticos. Esta ecologia molda cada vez mais jovens políticos que crescem nestes meios e que interiorizam esse ideal pessoalizado de fazer política que ninguém mais do que Santana Lopes utilizou, até ao absurdo do culto de personalidade do “menino guerreiro”. A crítica mediática à chamada liderança bicéfala do Bloco de Esquerda, em si uma solução normal e que não é certamente a causa dos seus desastres eleitorais, tem muito que ver com este acentuar da liderança solitária, “carismática” (a palavra mais mal usada no vocabulário político-mediático português) e vivendo do chamado protagonismo. Ideias, programas, formação, “mundo”, experiência, são reduzidos no “passar bem em televisão”, e isso acentua antipatias e simpatias que são transversais.

No conflito Seguro-Costa, Seguro tem muitas desvantagens à partida nessa simpatia “externa” ao PS e nalguns casos pelas piores razões. A origem social é em Portugal um enorme óbice, numa sociedade estratificada e onde um olhar novo-rico de uma certa burguesia urbana ilustrada e vagamente intelectual reconhece como “seus” aqueles cujo trato do mundo lhes parece próximo. Seguro faz parte daquele círculo de políticos que seria o alvo típico do Independente, o jornal que adorava o “velho dinheiro”, cuja corrupção e malfeitorias nunca denunciou, e detestava os políticos da “meia branca”. E dessa complacência social de que Seguro não goza, muitos outros beneficiaram. Mário Soares ou Sá Carneiro, Balsemão e Mota Pinto, Almeida Santos e Louçã, e muitos outros vinham da classe média alta, com longas vidas políticas na resistência à ditadura, ou com sólidas credenciais académicas ou profissionais, extenso currículo político, e isso conta muito em Portugal. Não garante nada, mas conta.

Isso desfavorece Seguro, mas não lhe permite o esboço de vitimização que os seus apoiantes sugerem, entre outras coisas apontando-o como uma vítima dos media, em confronto com as simpatias do seu antagonista. Seguro seria visto de outro modo, dizem, se pudesse ter uma tribuna nos media, coisa que ele teve durante muito tempo e em que não deixou memória nem saudades. Como líder do PS, no Parlamento em particular, podia, caso tivesse essas qualidades, beneficiar junto da opinião pública do confronto directo com o primeiro-ministro, uma rara oportunidade de afirmação de um líder político. E a verdade é que o mesmo anátema social desfavorecia Cavaco, “o filho do gasolineiro”, e José Sócrates, o engenheiro que não era engenheiro e fazia projectos de arquitectura. Cavaco e Sócrates deram a volta por cima e nalguns dos seus actos políticos estavam implícitos traços de vingança social, fazendo ir comer à sua mão alguns daqueles que os desprezavam profundamente.

De há muito tempo que se percebe que Seguro não está à altura não só das difíceis exigências da liderança da oposição mas muito menos para aparecer aos olhos da opinião pública como credível candidato a primeiro-ministro. Nestes últimos anos, o PS seguiu um curso errático e muitas vezes contraditório, aproximando-se perigosamente de uma colaboração de fundo com o Governo, seguida por recuos de agressividade retórica e inconsequente. Herdando, sem dúvida, uma situação muito difícil, preso ao memorando e à herança de Sócrates, Seguro nunca conseguiu libertar-se dessas circunstâncias, medindo as suas distâncias com o seu antecessor e definindo com clareza o que era aceitável ou não no memorando inicial, nem quanto à interpretação maximalista que o Governo PSD-CDS faz dele.

Assinou o Pacto Orçamental, e com isso selou, como fizeram outros partidos socialistas, a sua menoridade face à política que por aí se chama de neoliberal. Incapaz de formular qualquer discurso de oposição minimamente consistente e muito menos de se impor pessoalmente como alternativa, consegue o milagre de fazer Passos Coelho parecer para a opinião pública como melhor do que Seguro, embora os seus erros tenham custos infinitamente mais gravosos. Seguro tornou-se o seguro do Governo, como todos os dias se percebe e como o alarme face à possibilidade de vir a ser substituído revela.

Onde Seguro foi eficaz, foi como homem do aparelho. Blindou os estatutos para dificultar a vida aos seus opositores (como se vê nos dias de hoje), garantiu uma votação albanesa, distribuiu benesses por amigos e adversários e criou uma corte que promoveu à sua imagem e semelhança. Mas isso não chega. As suas duas vitórias eleitorais, nas autárquicas e nas europeias, não resistem à análise detalhada, como estando muito longe do que se poderia realisticamente esperar de um partido de oposição com tudo facilitado pela actuação agressiva e muitas vezes arrogante do Governo face aos portugueses que escolheu como alvo, a maioria. Deixou as ruas ao PCP e aos “indignados”, e nunca assumiu, mesmo nos momentos mais dramáticos, um claro não às políticas do PSD-CDS, mantendo sempre uma grande ambiguidade sobre o que faria quando fosse governo.

O modo como reagiu ao desafio de António Costa foi uma antologia do pior do aparelhismo. Começou por se negar a ir ao confronto, com argumentos burocráticos. Depois fez uma reviravolta e respondeu, “ai queres 8, vou-te dar 8000”, fazendo uma proposta confusa e impreparada de eleições directas cujo único objectivo, percebe-se muito bem, era protelar as eleições, esperando que o Governo caia, ou que Costa não consiga, preso à Câmara de Lisboa, competir com ele no circuito da “carne assada”. Inventou um novo cargo, o de “candidato a primeiro-ministro”, admitindo, numa fase inicial, manter-se como secretário-geral. Depois recuou de novo, percebendo que isso levaria a um tão grande downgrade da função, que nunca poderia condicionar coisas tão importantes para o aparelho como as listas de deputados. Depois, mostrando como isto é tudo feito em cima do joelho, para ganhar o favor dos eleitores das directas avançou com um conjunto de propostas demagógicas e populistas, abrindo caminho para maiores estragos no sistema político.

Nestes dias, ele mostrou a sua aptidão maior: defender-se a si e aos seus, mesmo que isso signifique incapacitar o PS para uns bons quatro meses, no meio de um agravar da situação política nacional. Ele diz que falará pelo PS como seu secretário-geral legítimo, mas para cada questão todos vão ouvir António Costa. Só que quem perde com todo este protelamento é o PS, é a oposição em geral, e quem ganha é o Governo. E já se percebeu que pretendem aproveitar essa margem de oportunidade, como se vê no confronto com o Tribunal Constitucional, que não teria este agravamento de tensão se o PS não estivesse bloqueado. O PSD e o CDS têm durante três meses cruciais, e muito difíceis para o Governo, um não-partido à sua frente. Seguro quer lá saber, ele quer é sobreviver, mesmo à frente de um partido castrado.

Historiador

 

 

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