Um bocejo chamado Sócrates

Ninguém acredita que o Ministério Público ande há três anos a arrastar os pés num processo que envolve um ex-primeiro-ministro.

José Sócrates está aos poucos a sair das primeiras páginas e do horário nobre. Na quinta-feira ele deu uma conferência de imprensa e o número de jornalistas na sala era desolador. Dois ou três canais ainda ensaiaram directos mas desistiram ao fim de cinco minutos. Era outra vez Sócrates a queixar-se de abusos inqualificáveis (tédio), insultos (enfado), infâmias (fastio), calúnias (bocejo), garantindo que o quiseram impedir de ser presidente da República (soneca) e afirmando que vai processar o Estado português (ronco). Já toda a gente ouviu isto tantas vezes que o discurso tornou-se narcoléptico. A táctica, de tão repetida, tornou-se evidente: Sócrates perpetua as queixas ao tratamento processual de que é vítima para evitar responder às dúvidas substanciais de que é autor.

E no entanto, eu estou ao lado de José Sócrates: por favor, não o esqueçam. Por favor, perseverem. Por favor, continuem a prestar atenção. Bebam sete bicas antes das suas intervenções, se for preciso – mas não mudem de canal. Ele é demasiado importante. Aquilo que está a ser investigado é demasiado importante. E as próprias dificuldades do processo são demasiado importantes. Nós não podemos adorar discutir a corrupção em abstracto mas depois não ter paciência para a analisar em concreto. Não podemos permitir que a corrupção só seja interessante se vier embrulhada em blockbuster de Hollywood – cheia de acção e sem tempos mortos –; mas se, por azar, ela aparece na forma de um filme de Manoel de Oliveira – lenta, longa, palavrosa, intrincada e a transbordar de detalhes complexos que exigem intensa actividade mental –, então já não há pachorra.

Sócrates e os seus advogados têm bastante razão nas críticas que fazem às questões processuais. Sim, a investigação está a demorar demasiado. Sim, é legítimo questionar se Sócrates deveria ter estado nove meses em prisão preventiva. Sim, o conceito de “prazo indicativo” deixa um cidadão desprotegido face ao Estado. Mas depois é raro encontrar algum advogado que tire as conclusões que se impõem: a complexidade deste tipo de criminalidade exige uma mudança radical nas leis do combate à corrupção, seja legalizando o enriquecimento ilícito, seja desenvolvendo o direito premial no sistema penal português. Ninguém acredita que o Ministério Público ande há três anos a arrastar os pés num processo que envolve um ex-primeiro-ministro. E não, não é por haver indícios a menos, como sugere a defesa de José Sócrates. É por haver indícios a mais. É por causa da avalanche de indícios, da complexidade da prova de corrupção, e do envolvimento de offshores e circuitos internacionais que exigem a emissão de inúmeras cartas rogatórias, que a investigação acaba por se estender por meses e anos sem fim.  

Este é o problema processual, que exige respostas políticas. E depois existe o problema político, que exige respostas cívicas. Poucas perguntas são mais importantes do que estas: como é que se constitui o triângulo governo-BES-PT, quem o promoveu, quem o protegeu, quem o alimentou, quem o escondeu – e o que fazer para evitar que qualquer coisa de semelhante volte a acontecer. Saber isto é essencial para o país, e é por essa razão que cada um de nós tem o dever cívico de prestar atenção de cada vez que Sócrates abre a boca. É muito possível que venhamos a descobrir que fomos o povo mais estúpido do mundo entre 2005 e 2011. Mas antes burros assumidos do que ignorantes escondidos.

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