Tudo ao contrário

Parece ser a altura para analisarmos as estratégias da direita e da esquerda, tal como elas se apresentam hoje.

De repente, acalmou. A crise já ficou para trás, os comentários sobre os discursos do Presidente e do primeiro-ministro passaram à história. O ressentimento será vencido por terapêutica ocupacional. Ainda é cedo para balanços, nem são o que mais importa, por agora. As pedras e obstáculos continuam a semear o caminho, as alianças parecem frágeis, os interesses contraditórios e alguns intoleráveis. De Bruxelas chegaram já as habituais palavras de fair-play, mesmo que não gostem do governo português, dão-lhe as boas vindas. Vai seguir-se o debate sobre um programa já conhecido. O ambiente externo continua tenso, a ameaça de terrorismo apaga a importância da crise das dívidas soberanas, podendo até ajudar alguns países como a França, que carecem de alargar cordões à bolsa para pagar encargos militares e de segurança. Bom pretexto, ninguém teve coragem de se opor.

Parece ser a altura para analisarmos as estratégias da direita e da esquerda, tal como elas se apresentam hoje.

Na frente interna, os riscos parecem adiados, mesmo sem concessão de lua-de-mel ao Governo. O debate sobre o programa vai ser rijo, sem concessões. Depois, é natural que surjam tréguas, por necessidade de mudança de cenários e de figurantes. O estado de negação da Oposição irá continuar, agarrada a um calendário de curto prazo que a faz aspirar a uma queda rápida do Governo baseada em argumentos velhos de dois meses: “venceram” as eleições, o seu mandato foi usurpado pela esquerda, o Parlamento foi manipulado por maioria conjuntural feita de minorias que raramente se costumam entender. A estratégia da direita, pelo menos até à semana passada, assentava em eleições antecipadas em altura que melhor lhe conviesse, para recuperar maioria absoluta. Ora esta só se consegue conquistando o centro. O PS perdeu parte dele com o acordo à esquerda, mas a distância a que a coligação está de uma maioria absoluta pode alargar-se ainda mais com as primeiras medidas de incremento à procura, bem dirigidas e executadas. Complementarmente, a direita procurará dividir as esquerdas, avivando potenciais pontos de fratura. Tática interessante, mas difícil de executar, sobretudo quando a direita se encontra em minoria e a memória das sequelas sociais da recusa do PEC 4, em 2011, está ainda muito viva. De resto, nada melhor pode a direita oferecer ao Bloco e ao PC que o PS não tenha já acordado.

A estratégia da esquerda é clara. Antes de mais, governar melhor que a direita. Cuidando das pessoas, das empresas e do país, restaurando equilíbrios sociais perdidos, unindo o que foi artificialmente fendido, permitindo aos mais deserdados recuperar poder de compra ampliando o consumo de bens transacionáveis de produção nacional e baixo custo, como habitação, alimentação, vestuário e calçado, turismo interno, educação e cultura, sim cultura, não apenas livros escolares, uma ameaça de cada Outono, também meios para ampliar o conhecimento por via digital. A melhoria de rendimentos nas classes baixas, a gerar pelo novo escalão de imposto negativo, pela reposição de cortes em ordenados e pensões, pela melhoria das subvenções sociais, estimulará a economia sem desequilibrar a balança comercial, espera-se. Desenvolvendo educação, ciência, tecnologia e inovação e garantindo a recuperação dos serviços de saúde. Aproveitando os fundos comunitários para investimento produtivo ocorrerá retoma do crescimento e do emprego. Um programa mínimo simples de executar e acompanhar e de resultados observáveis no curto prazo. Tão simples que facilmente cria aderentes e repele cisões. Para quem acumulou cortes sistemáticos em quatro anos, não será difícil alinhar numa política que os reverta. Claro que a paz social não durará sempre e o risco de escalada reivindicativa nascerá em cada “vitória”. Um pequeno fogo pode sempre gerar um grande incêndio. Daí a importância profilática dos encontros regulares. Costa vai ter aqui tanto trabalho como em Bruxelas.

Será possível este programa sem rutura com os pretendidos paradigmas de Bruxelas? Não faltará quem grite aqui d’el-rei, que estão a destruir o que fizemos! Já conhecemos a cantiga. Sim, será possível e passaremos em todos os exames porque os de lá não são estúpidos. Sabe-se que já perderam parte do dogmatismo inicial. A vida mostra que há sempre outras alternativas. Aceitáveis.

Quando a história deste período se fizer, nunca agradeceremos suficientemente ao Presidente esta sua contribuição para a união das esquerdas. Bem sabemos que foi contra a sua vontade, mas a ele devemos a argamassa que uniu os materiais, permitindo que um adversário exterior comum tivesse como efeito a reunião antes julgada impossível. Ao adotar o preconceito ideológico como matriz de escolha política, o Presidente não pensou nos efeitos colaterais da sua estratégia de pretensa estabilidade institucional. Saiu-lhe ao contrário. Mas fez pior. Quando, sem fundamento nem meios, ameaçou o Governo com um pretenso poder de demissão, perdeu-se na ameaça gratuita, permitiu ao Governo a postura de Estado que nele escasseava e enfraqueceu os seus aliados objetivos da direita. Saiu-lhe tudo ao contrário.

Professor catedrático reformado

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