Tertúlia mensal com padres no Campo Grande

“Um laico ecuménico” é como um sacerdote amigo da família descreve a trajectória das relações de Soares com a Igreja.

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Mário Soares foi “um laico profundamente ecuménico”, diz o padre Feytor Pinto Daniel Rocha

Socialista, republicano e agnóstico, como se definia, Mário Soares manteve nos últimos anos da sua vida uma tertúlia com quatro sacerdotes. Uma vez por mês, Soares falava de tudo com os padres Feytor Pinto, Vitor Melícias, Frei Bento Domingues e Don Januário Torgal Ferreira, bispo emérito das Forças Armadas.

“Quando terminava a reunião, levava-nos sempre ao seu escritório e mostrava-nos as fotografias do pai vestido de sacerdote”, relata ao PÚBLICO Feytor Pinto, padre da paróquia dos Santos Reis Magos ao Campo Grande, cuja igreja é fronteira à residência da família Soares.

“Ele repetia muito a expressão: ‘A fé é um dom de Deus que não recebi.’” “Aliás, disse-o publicamente", recorda o pároco do Campo Grande. “Considerava-se agnóstico, que é o que está à procura”, prossegue Feytor Pinto. “Sempre respeitou a dr.ª Maria de Jesus Barroso [católica praticante nos últimos anos de vida], o mesmo se passou com a família, na qual cada um é o que é do ponto de vista da cultura, da opção, da religião, mas é respeitado. A maneira de ser cristão de Mário Soares foi este respeito.”

O padre participante nas tertúlias recorda em Soares o “respeito profundo pelos outros”. E dá exemplos: “Quando no início do PREC [Processo Revolucionário em Curso] se pretendeu magoar a Igreja, ele recomendou a toda a esquerda que não o fizesse, porque tinha sido o primeiro grande erro da I República.”

Mário Soares não se ficava por este alerta. “Sou testemunha, talvez das poucas e quase a última”, lança o pároco do Campo Grande: “No Verão Quente de 1975 pretendiam assaltar o Patriarcado, que entretanto fora cercado por forças da esquerda. Fui autor da resistência, estava entre os oito mil cristãos que tapavam a porta do Patriarcado, 37 ou 38 foram para o hospital com pedradas.”

O relato prossegue: “A certa altura, houve a necessidade de abrir as portas e quatro mil cristãos entraram nas instalações. Estava ao lado do patriarca, António Ribeiro, toca o telefone e Soares diz que está com um problema idêntico.” Dirigentes e militantes do PS estavam cercados nas instalações do jornal República, na Rua da Emenda, que radicais da esquerda queriam invadir e incendiar.

Feytor Pinto lembra as últimas palavras do então secretário-geral dos socialistas: “Se querem, vamos para aí defender o Patriarcado, defender os cristãos que estão aí dentro.”

De acordo com o sacerdote, “nasceu uma grande cumplicidade entre o senhor patriarca e Mário Soares para resistir aos ataques dos radicais de esquerda". E sublinha: “Assisti a muitas conversas, foi muito bonito.” Assim foi forjada uma aliança contra as forças do PREC que levou à mobilização da Igreja.

“Quando surgiu a questão do aborto [1982/84], houve quase um corte das relações entre o PS e a Igreja e Mário Soares convidou o cardeal Agostino Casaroli, secretário de Estado do Vaticano, e o patriarca. Casaroli pegou nas mãos dos dois, disse-lhes que deviam continuar a ser muito amigos, porque Portugal precisava dos dois.” Este episódio, relatado pelo pároco do Campo Grande, prova uma proximidade entre o líder dos socialistas portugueses e o chefe da diplomacia do Vaticano.

Feytor Pinto abre uma pista: “Houve relações anteriores com a Igreja, existiu uma conversa de Mário Soares com o cardeal Casaroli sobre a descolonização, depois Soares participou no espírito de Assis, reunião de dezenas de dirigentes mundiais com João Paulo II, para a construção da paz."

Já noutro patamar, o sacerdote lembra o relacionamento de Soares com a congregação de Santo Egídio, que ajudou à paz em Moçambique. E, por fim, recorda a presidência de Mário Soares na Comissão de Liberdade Religiosa de Portugal. “É um laico que foi profundamente ecuménico”, sintetiza Feytor Pinto.

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