Tensão entre o Tribunal Constitucional e o poder político é normal, a novidade é a sua duração

Os ex-presidentes do TC Cardoso da Costa e Moura Ramos chamam a atenção para a particularidade do momento político quando se questiona e critica aquele órgão. Vitorino lembra que “onde há dois juízes, há duas opiniões”.

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A tensão entre Governo e juízes do TC perdura há três anos Enric Vives-Rubio

A tensão entre o Tribunal Constitucional (TC) e o Governo, suscitada há cerca de três anos e desde então em aparente crescendo, pôs o país político e a opinião pública a discutir a acção, o perfil e os objectivos do órgão de soberania que tem como função, no sistema político de Estado de Direito Democrático, a fiscalização do cumprimento da constitucionalidade na elaboração das leis pelos dois órgãos de poder legislativo, a Assembleia da República e o Governo.

Na opinião dos dois ex-presidentes do TC vivos, Cardoso da Costa e Moura Ramos, ouvidos pelo PÚBLICO esta tensão é normal e em momento nenhum o TC exorbitou funções ou assumiu uma atitude política que exceda o que é o normal cumprimento do seu papel no sistema. Uma opinião que é partilhada também pelos catedráticos de direito constitucional, Joaquim Gomes Canotilho, Jorge Miranda, Jorge Reis Novais. E pelos antigos juízes-conselheiros António Vitorino e Paulo Mota Pinto.

Vivemos, não há dúvida, no que toca à exposição pública do TC, uma situação inédita na duração do que está a acontecer e na acuidade que isso ganha, pela situação em que está o país”, afirma Cardoso d a Costa, antigo presidente do TC (1989-2003), que integrou durante vinte anos aquele órgão de fiscalização constitucional, depois de ter estado dois anos na Comissão Constitucional do Conselho da Revolução.

Igualmente Moura Ramos, ex-presidente do TC (2007-2012) e catedrático de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra diz que “éinerente à actividade dos juízes a tensão com o poder político”, isto porque “o juiz [constitucional] tem como missão dizer ao poder político o que ele não pode fazer”. Assim, acrescenta, “é evidente que em épocas mais difíceis, isso é menos bem compreendido, quer da parte do poder político que da parte dos cidadãos”.

O ex-presidente do TC sublinha que este órgão de fiscalização constitucional “intervém depois de na praça pública haver todo o tipo de julgamentos, mesmo antes das normas serem consideradas ou não inconstitucionais”. O antigo juíz-conselheiro sublinha que “isto não pode impedir o Tribunal de fazer o seu trabalho, de apreciar as regras em função do texto constitucional e daquilo que, à sua luz, pode ser permitido”. E lembra que “o TC emitiu na sua história dezenas de julgamentos de que ninguém se lembra”. Aliás, a excepcionalidade da polémica é salientada pelo antigo juiz-conselheiro e hoje deputado do PSD, Paulo Mota Pinto, que sublinha que “a esmagadora maioria da actividade do TC é meramente judicial, 90 % da actividade são recursos das decisões dos tribunais.”

Moura Ramos adverte para a emergência do momento. “O que se passa é que agora estão em causa regras orçamentais que implicam na vida do cidadão comum, isso dá um relevo que outras decisões não tinham”, diz o ex-presidente, acrescentando: que “o momento que vivemos não é comum”.

Nos trinta anos de vida do TC, desde que em 1983, após a revisão Constitucional de 1982, substituiu a Comissão Constitucional que integrava o Conselho da Revolução, então extinto, só agora surge esta polémica constitucional à volta do Orçamento do Estado, nos últimos três. Até agora, embora tivessem existido inúmeros pedidos de fiscalização sucessiva do Governo da Madeira e dos Açores, das assembleias legislativas regionais, do Provedor de Justiça, pedidos de fiscalização feitos por Presidentes que tenham incidência orçamental ou na receita fiscal, houve apenas um em 1983 e outro em 2003 (ver caixa). E António Vitorino, antigo juiz-conselheiro nomeado pelo PS e que foi ministro de António Guterres, salienta que nunca um Presidente recorreu a uma fiscalização preventiva de OE, e que nem em 1983 nem em 2003 houve chumbo pelo TC.

“A polémica é normal”
Essa excepcionalidade não é razão para desvalorizar o papel do TC em nome de uma suposta normalidade sem polémica e sem tensão, segundo Cardoso da Costa. “Não me peçam para dizer que o TC decide e as pessoas têm que estar caladas. A polémica é normal. O TC está a ser sucessivamente confrontado com normas orçamentais, umas atrás das outras, depois com medidas custosas para os destinatários, que limitam a sua capacidade económica. Quando o TC declara algo inconstitucional, as pessoas ganham simpatia, pois são medidas que as afectam imediatamente.”

E Cardoso da Costa insiste em que “são cortes de subsídios, de rendimentos, de salários que são imediatos, o que dá mais acuidade e actualidade em relação ao juízo que se faz”, logo “há um risco maior de a divergência política ser transposta para a divergência constitucional”. E conclui: “Eu não atribuiria gravidade e dramatismo extremos à polémica em torno da decisão do TC. É normal. O TC tem de contar com isso.”

O antigo presidente do TC refere que a polémica não é nova: “Nas primeiras alterações às leis do trabalho, nos governos de Cavaco Silva, o TC tomou decisões polémicas. O primeiro pacote laboral foi considerado parcialmente inconstitucional e o Governo de então aproveitou o acórdão para mudar a lei.” Acrescentando que ela também “não é singular em Portugal”, lembra o clamor em Espanha quando o TC declarou inconstitucionais o Estatuto da Catalunha ou à legalização do partido basco, em ambos os momentos alegando que o direito à autodeterminação punha em causa a integridade constitucional da soberania espanhola.

Cardoso da Costa considera, assim, “legitimo que o Governo discorde da decisão e diga que que se torna mais difícil o cumprimento do memorando”. Perante as decisões do TC, defende que “é tão legítimo o Governo criticá-las, como a oposição aplaudi-las” e conclui: “Para falar em pressões, a oposição também faz pressão.”

A outra fonte de críticas, o presidente da Comissão Europeia é desvalorizada: “Durão Barroso nada disse que funcione como pressão, não é por Governo dizer uma coisa e a oposição outra e Durão Barroso se meter na discussão que o TC vai deixar de decidir.”

A factura da ajuda externa é visível. As medidas que têm sido analisadas pelo TC, sublinha, foram “adoptadas para corresponder a uma ajuda que a Comissão está a prestar a Portugal” e “quem empresta o dinheiro, perante dificuldades do Governo português, é natural que possa mostrar preocupação.”

Por seu lado, Moura Ramos adverte que o caso português tem particularidades que levam a que seja normal a intervenção no debate de líderes de instituições internacionais. O Conselho Constitucional Francês recusou a Lei do Imposto sobre o Rendimento porque a lei criava um imposto que “é um acto livre do Estado francês”, em Portugal “são medidas impostas por acordo vinculado por terceiros que são credores”.

Não é matemática
Moura Ramos lembra mesmo que mesmo entre os juízes do TC pode haver e há posições diferentes, porque “não se trata de matemática nem de física”. Contudo, insiste na ideia de que “o TC não está a exorbitar coisa nenhuma”, os juízes-conselheiros “podem decidir num sentido ou noutro”, pois “o TC existe para proceder a este tipo de julgamentos”. E para António Vitorino “ onde há dois juízes, há duas opiniões”.

O socialista considera também que “o debate sobre o TC ser força de bloqueio é um debate político” e quem o faz “tem de ter em conta quem estabelece o perímetro da lei é o legislador e o TC diz apenas se é ilegal”, o que significa que “quem escolhe o terreno da luta é o legislador”. Lembra que, “no passado, a lei das propinas foi exemplo disso, Manuela Ferreira Leite fez a lei e o TC disse que não podia aumentar tanto as propinas, estabeleceu a fasquia”. Nestes processos, este socialista identifica “uma dinâmica de diálogo entre o legislador e o TC”, que diz ser própria da democracia: “É assim mesmo, quem quer evitar chumbos segue a jurisprudência”.

Vitorino defende que “tem havido pressão política para que o TC faça uma interpretação favorável ao Governo”, quando, em 30 anos, é já possível perceber que há alguma jurisprudência a seguir”. É a atenção a este ponto que diz ter faltado. “O Governo e a maioria parlamentar adoptaram soluções em que houve pouco cuidado em ler e em ter em conta a jurisprudência do TC”, defendendo mesmo que o Governo teve “pouco cuidado ou quis provocá-lo”.

Como exemplos, aponta, “a nova versão da lei da requalificação, em que a maioria tentou testar os limites do TC em relação ao despedimento” e chegou a uma nova versão “mais em linha com a margem que o TC deixa ao legislador” e com “os acórdãos sobre os supranumerários de Cavaco Silva e depois de José Sócrates”. Segundo exemplo é o actual OE, onde “o Governo teve mais cuidado e deu sinais de que esteve mais atento à jurisprudência”.

Já Paulo Mota Pinto, antigo juiz-conselheiro do TC indicado pelo PSD, partido pelo qual é hoje deputado, considera que “é excessivo dizer que há deriva política.” Defensor de que “deve haver uma auto-contenção do TC”, defende que “o contexto e o tipo de medidas mudaram, o que torna a intervenção do TC aparentemente mais política”. Por isso, argumenta, “o TC deve ter cuidado para não ter uma argumentação política”.

O Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Jorge Miranda afirma mesmo que “as decisões de um TC não são a mesma coisa que decidir sobre um contrato ou sobre uma herança, é decidir sobre uma lei do Estado”. O que faz com que haja “uma evolvente política”, que é também devida ao facto de “todos os TC serem nomeados a partir de órgãos políticos.” E nas críticas ao TC, Miranda vê “ muita ignorância e muita má-fé”.

Do mesmo modo o Catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra, Joaquim Gomes Canotilho, sustenta que é necessário “esperar que passe o ruido político em torno destas questões”, até porque “muitas das pessoas falam sem saber, vão opinar à televisão muitas vezes nada sabendo sobre o que se discute, nem sequer como surgiram os TC”.

Justiça de olhos abertos
Cardoso da Costa afirma assim que “o papel do TC é este, tem de o fazer, esse é o seu grande poder, decretar a inconstitucionalidade das leis”. Mas questiona-se sobre a forma como o TC deve exercer essa função. “Às vezes, temos a imagem da Justiça de olhos vendados. Rejeito essa imagem”, diz Cardoso da Costa, argumentando que “a Justiça, sobretudo a Constitucional, tem que ter em conta a realidade, seja a julgar um arguido, seja a julgar uma lei, não pode ignorar as consequências da sua decisão”.

Por isso, afirma que “o TC deve estar atento aos efeitos das suas decisões, porque as consequências negativas podem ser um alerta sobre se está a aplicar da melhor maneira a Constituição”, para concluir: “Deve perguntar-se: será que a Constituição proíbe mesmo a futura lei? Deve ser uma reflexão. O TC tem de estar muito atento às circunstâncias. O problema é se apesar deste contexto o juiz considera que a norma é impossível e deve votar contra.” E conclui: “Depois estamos cá para critica, os juristas e o público em geral. O sentimento da opinião pública em relação à Constituição deve ser interpretado.”

Igualmente Moura Ramos considera que “o TC quando decide não pode ignorar os princípios que movem a opinião pública”. Pois ainda que não aja em função da opinião pública”, a verdade é que, “quando se restringem direitos, essa restrinção tem que surgir como absolutamente necessária, porque não há outra solução” E conclui: “O legislador tem de explicar isso e a medida tem de ser apresentada sem desigualdades gritantes.”
 
Cinco casos em que o OE estava em causa

1983
Em 1983, o Presidente Ramalho Eanes enviou para o TC, ao abrigo da fiscalização preventiva, a Lei que criava o “imposto extraordinário sobre rendimentos colectáveis sujeitos a contribuição predial, imposto de capitais e imposto profissional”. O que esteva em causa neste pedido era uma lei fiscal e não o Orçamento, mas a incidência orçamental é óbvia. O que estava em causa era a retroactividade da mesma. O relator foi o Juiz Conselheiro Martins da Fonseca e considerou a lei constitucional, já que a retroactividade era desaconselhada fiscalmente, mas não era constitucionalmente proibida.

2003
Em 2003, o TC emitiu um acórdão da autoria da juíza conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza em resposta ao pedido de fiscalização sucessiva do Orçamento de Estado para esse ano enviado pelo Presidente Jorge Sampaio. Em causa estava o facto de nesse Orçamento serem introduzidas alterações ao regime especial de pensões da Caixa Geral de Aposentações, que entrariam em vigor apenas no ano seguinte. Não tinha, assim, consequências imediatas sobre o Orçamento desse ano.

2011
Em 2011, o TC emite um acórdão, de que foi relator o juiz-conselheiro Sousa Ribeiro, em resposta ao pedido de fiscalização sucessiva do Orçamento do Estado para 2011, assinado por um grupo de deputados da oposição ao Governo do PS, chefiado por José Sócrates. Em causa estavam os cortes de rendimento das pessoas com salários superiores a 1500 euros. As medidas foram consideradas constitucionais 

2012
Em 2012, o TC emite um acórdão de que foi relator o juiz-conselheiro João Cura Mariano, em resposta ao pedido de fiscalização sucessiva do Orçamento do Estado para 2012, assinado por um grupo de deputados da oposição ao Governo do PSD e do CDS, chefiado por Passos Coelho. Em causa estavam os cortes de subsídios de férias e de Natal, de funcionários públicos e de aposentados e reformados, que acresciam aos cortes remuneratórios anteriores. Ambos os cortes de subsídios foram considerados inconstitucionais.

2013
Em 2013, o TC emite um acórdão de que foi relator o juiz-conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, em resposta ao pedido de fiscalização sucessiva do Orçamento do Estado para 2013 feito pelo Presidente da República, Cavaco Silva. Em causa estava a suspensão do subsídio de férias dos trabalhadores da função pública e 90% dos reformados e pensionistas e os contratos de docência e investigação, a contribuição extraordinária de solidariedade sobre as pensões mais elevadas, alterações do IRS e sobretaxa sobre este imposto, impostos sobre subsídio de desemprego e de doença. As quatro primeiras medidas foram consideradas inconstitucionais.
 
 


 
 
 

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