Tempos excecionais (I)

A pergunta evidente é saber se o PCP e o Bloco podem, desta vez, interromper o círculo vicioso da desilusão e baralhar o cálculo perverso do voto útil no PS.

1. Vivemos tempos excecionais. Um milhão de portugueses desempregados, muitos deles para o resto da vida. Um quarto de nós vive na pobreza, muitos em privação extrema, depois de 700 mil terem abandonado o país nos últimos cinco anos, depois de outros 700 mil o terem abandonado nos dez anos anteriores.

Pela terceira vez em cem anos, Portugal perde habitantes (emigram e morrem muito mais portugueses do que aqueles que nascem) – e aquela ministra de sorriso ofensivo, que se atreve a pedir aos jotinhas do PSD que “se multipliquem”, assegura, impante, que “os cofres estão cheios”. Desde 2002 que Portugal, coincidindo (coincidência?) com a chegada do euro, entrou numa década perdida, que, desde 2008, nos levou à pior regressão dos índices de qualidade de vida desde a última vez que o FMI entrou a matar no nosso país (1983-84).

Treze anos a andar para trás. No bem-estar e na democracia. Para os historiadores, vai ser tristemente fácil sintetizar o início do nosso século XXI. Os quatro homens que dirigiram o governo neste período dizem bem do que se tornou a democracia em Portugal. Durão, o oportunista que decretou a “tanga” financeira do Estado, implicou Portugal numa guerra ilegal (a do Iraque), e tornou-se o mais oco dos eurocratas. Santana, o frívolo que, à primeira vez que foi a votos, levou a direita à maior derrota eleitoral desde 1975. Sócrates, o ególatra que disfarçava uma estratégia liberal de cortes no Estado social atrás de um reformismo sem projeto nem dinheiro. Em 2005, ganhara meio milhão de votos de quem queria castigar Santana; em seis anos perdeu um milhão: nenhum líder político português iludiu e desiludiu tão depressa! Tornou-se o primeiro chefe de governo da democracia a ser preso e a ver a sua prisão confirmada por “indícios fortes dos crimes” de corrupção e de apropriamento indevido. Passos Coelho, o amoral que, à moda de Cavaco, bate no peito, ofendido, perante as provas que o revelam o contribuinte acidental dos tempos em que trabalhava para empresas dependentes de estranhos contratos de governos PSD, ou o assalariado saltuário que não sabia bem se devia ou não pagar a mesma Segurança Social que, sob o seu governo, tão implacável se mostra com os pequenos. Acima deles, está há nove anos o seráfico de Boliqueime, representação por antonomásia do ódio ao 25 de Abril, dez anos como Primeiro-Ministro a oferecer em bandeja a vingança dos pobres espoliados de 1975 (os Champalimauds, Mellos e Espíritos Santos), num processo que, como se vê, tão bons resultados trouxe, desde há nove anos a fazer discursos com a mesma utilidade que os de Américo Tomás, sobre o regresso ao campo, os riscos de pobreza que o divórcio traz às mulheres ou a necessidade do consenso (isto é, de bolinha baixa) em tempos de cólera.

É por se acrescentar a uma economia que produz desigualdade e pobreza, a uma sociedade em regressão e em dor, que a crise de credibilidade do sistema político é mais grave. Numa época excecional de perda - de qualidade de vida, de criatividade, de alegria, de capacidade de recuperação -, é natural que as alternativas que temos de procurar sejam excecionais. Que sejam, pelo menos, diferentes das que temos construído até hoje.

2. Para criar uma alternativa há, antes de mais, que resistir. Não falo da “resiliência” dos portugueses que Passos apregoa, ofendendo os novos pobres, as mulheres, os homens e as crianças a quem ele roubou emprego e esperança. Falo de uma resistência que permite juntar forças para mudar. Falo de quem discute com quem corta nos salários e aumenta nos horários “porque é pegar ou largar”, de quem, em escolas, hospitais, serviços públicos, discute com as chefias que fazem os cortes que se impõem a partir de cima, de quem nos sindicatos denuncia, sem papas na língua, as tramóias no fisco e na banca, os horários ilegais, os cuidados de saúde prestados sem condições, o abandono dos reformados, o trabalho gratuito dos jovens obrigados a sucessivos estágios, o trabalho ilegal de imigrantes sem contrato... Aqueles que arriscam uma voz contra quem manda, por mais medo que sintam já em se fazer ouvir, em se juntar para fazer com que o protesto se torne público, ou simplesmente em se sindicalizar, sabem bem onde encontram apoio. Politicamente falando, e como sempre tem acontecido, quem anima e dá sentido a essa resistência está quase sempre à esquerda do PS, isto é, no PCP (a maioria) ou no Bloco de Esquerda, e não está nunca nos partidos do centrão. Vestidinhos de “alternativa responsável”, os socialistas que dirigem ou aspiram a dirigir o partido não fazem uma greve, porque são “negativas”, não organizam um protesto ou uma manifestação, porque são “inúteis”, jamais se comprometem com o mexilhão; limitam-se a dizer-lhe que, se quiser pôr aquela gente de lá para fora, só há uma solução: é votar neles, sem compromisso – e depois se verá. Tem-se chmado a isto o voto útil.

Essa permanece a grande contradição à esquerda. Entre os milhões de assalariados cujo bem-estar depende exclusivamente do seu trabalho e do acesso à educação, à saúde e à segurança social públicas, muitos procuram o apoio dos comunistas e dos bloquistas, e de muitos dos novos ativistas católicos de base que se têm mantido fora do sistema de partidos. Contudo, quando chega a hora de votar, tendem a achar que o instrumento eleitoral só funciona se se votar em quem tem ganho (os socialistas ou a direita) – acabando, desta forma por, eles próprios, ajudar a confirmar essa mesma regra. Em muitos casos, vota-se nuns para, logo a seguir, pedir ajuda aos outros. É por isto que muita da história da democracia eleitoral em Portugal é a história de sucessivas desilusões: desilusão com Durão, e depois com Santana, ilusão e desilusão com Sócrates, ilusão e (quanta...) desilusão com Passos e Portas.

3. Da situação excecional que vivemos esperar-se-ia que saíssem alternativas excecionais. A atomização dos dissidentes do Bloco, somada à sua disponibilidade para servirem de satélite do PS, só contribui para esse velho mito de como é inevitável a divisão da esquerda. Não é daí que virá alguma alternativa. A pergunta evidente é saber se o PCP e o Bloco podem, desta vez, interromper o círculo vicioso da desilusão e baralhar o cálculo perverso do voto útil no PS. Cada um deles tem expectativas próprias para as próximas eleições. Serão elas compatíveis com as de quem eles querem representar? Serão elas suficientes para transformar a resistência em mudança?

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