Sombras de ditadura no dia da democracia

A proposta de lei sobre cobertura eleitoral é um insulto à democracia nestes 41 anos do 25 de Abril.

Como estamos num país onde as meias-tintas se impõem à clarificação e, sobretudo, ao assumir de responsabilidades, convém dizer, desde já, isto: a proposta de lei que está em discussão na Assembleia da República, com o fito de estabelecer o “regime jurídico da cobertura jornalística em período eleitoral”, é um insulto à democracia e revela um tipo de arrogância cada vez mais comum nos que vão experimentando as rédeas do poder.

É claro que, divulgado o texto (e este fala por si), vieram logo as explicações: que não estava em causa qualquer visto prévio, que o texto é provisório, que há uma reflexão em curso, etc. É difícil dizer o que mais irrita: se a falta de coragem em assumir posições, se a propensão (aliás, também muito em voga) para diluir tudo num mar de vacuidade. Mas vamos ao que importa, à lei propriamente dita. Atente-se no artigo 6.º: "Os órgãos de comunicação social que façam a cobertura eleitoral entregam à comissão mista [que é composta, segundo o mesmo texto, por três pessoas: o presidente da CNE, um vogal da CNE ali eleito por dois terços; e um membro da ERC] (...), antes do início do período de pré-campanha, o seu plano de cobertura dos procedimentos eleitorais, identificando, nomeadamente, o modelo de cobertura das ações [sic] de campanha (...), a realização de entrevistas, de debates (...), de reportagens alargadas, de emissões especiais ou de outros formatos informativos". Isto porquê? Para garantir (art.º 4.º) "o esclarecimento dos eleitores", o "contraditório", o "direito de informar e ser informado", etc. Quanto a "formatos de opinião, de análise política ou de criação jornalística" [sic], não podem exceder (art.º 7.º) o espaço "dedicado à parte noticiosa ou de reportagem". Além de ser "expressamente proibida a inclusão na parte meramente noticiosa ou informativa de comentários ou juízos de valor". Isto quer dizer que, sendo os jornalistas incompetentes e idiotas, três insignes criaturas zelarão para que eles finalmente entrem nos eixos.

Ah, mas não de trata de visto prévio, argumentam os autores. Pois não. Trata-se de uma inqualificável imposição, e sob ameaça. Artigo 13.º, na íntegra: "A empresa proprietária de órgãos de comunicação social que, fazendo a cobertura do período eleitoral, não apresente o plano de cobertura exigido pela presente lei ou que não o cumpra depois de validado pela comissão mista (...) é punida com coima de € 5.000 a € 50.000." Convém sublinhar o "que não apresente", o "não o cumpra" e o "depois de validado". Querem fazer de todos nós parvos? Leiam-se a si próprios antes de falarem, por favor.

Pormenor caricato: os senhores deputados podiam ter tido a gentileza de perceber que, por mais que quisesse (e nós, obviamente, não queremos), nenhum jornal do mundo conseguiria apresentar um plano de cobertura "antes do início da pré-campanha", pois esta começa no "dia seguinte ao termo do prazo para apresentação de candidaturas". Ou seja: os planos seriam feitos sem se conhecer a totalidade dos candidatos, o que se já é absurdo em eleições legislativas seria uma idiotice inominável em caso de autárquicas.

Por isso, senhores: cumpram o vosso papel que nós cumpriremos o nosso. Os leitores do PÚBLICO terão, da nossa parte, aquilo a que sempre os habituámos: os instrumentos informativos necessários para poderem votar em plena consciência. Esta lei ditatorial, pela enormidade que configura, só pode estar condenada ao fracasso.

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