Sócrates acusa Cavaco de ter sido "um opositor" e um Presidente "nada imparcial"

Ex-primeiro-ministro diz que não aceita ser confrontado com todas as responsabilidades que lhe querem atribuir e faz acusações a Cavaco: "Não lhe reconheço autoridade moral para dar lições de lealdade institucional." E garante que não quer regressar à vida política activa.

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Sócrates, na entrevista à RTP Enric Vives-Rubio
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Disse que não quer regressar à vida política activa, fez acusações duras de falta de lealdade a Cavaco Silva, defendeu a sua governação, repetiu que a ajuda internacional foi provocada pelo chumbo do PEC IV, acusou o actual Governo de ter ido além da troika e defendeu que o país precisa de parar com a austeridade. Foi esta a narrativa de José Sócrates, no seu regresso à vida mediática portuguesa após dois anos de silêncio.

Igual a si próprio, o antigo primeiro-ministro resistiu a admitir erros concretos. No início da entrevista à RTP disse que “só não comete erros quem não faz nada” e perto do final reconheceu que houve “muitos erros com certeza”. Um exemplo? “Talvez o erro mais visível. Nunca devia ter formado um Governo minoritário. Isso fragilizou muito a nossa actuação. Tínhamos que enfrentar um Parlamento hostil, uma oposição radicalizada e um Presidente da República que não foi nada imparcial”, disse Sócrates.

A entrevista começou com uma declaração ao que não vem. Voltar à televisão não é um trampolim para o regresso à política activa. “Não tenho nenhum plano para regressar à vida política activa”, disse José Sócrates, recusando ter o desejo ou o plano de ser candidato a qualquer cargo político.

“Não são só os políticos, mas os jornalistas políticos que estão viciados na politiquice”, disse Sócrates, sobre a especulação que o seu regresso motivou. “A minha única preocupação é participar no debate político.”

Sócrates justificou a quebra de um silêncio de dois anos por este ser "o tempo de tomar a palavra". "Não aceito ser confrontado com todas as responsabilidades que me querem atribuir", disse o ex-primeiro-ministro, acusando a direita de ter construído "uma narrativa sem contraditório" acusando-o de ser responsável pela crise em Portugal.

O antigo primeiro-ministro recusou, por outro lado, pedir desculpa pelos actos do seu Governo ou por ter pedido ajuda externa. Embora admita erros – "só não comete erros quem não faz nada" –, Sócrates argumentou que "foram os mercados financeiros que provocaram a crise": "Tudo isto começou com comportamento desonesto e ganancioso dos mercados."

Mas então quais são as responsabilidades dos Governos de Sócrates na crise?, perguntaram os entrevistadores da RTP. "Assumo todas as responsabilidades da minha governação, mas não aquelas que me querem atribuir à força", respondeu Sócrates, que evitou críticas a António José Seguro.

Sobre o recurso à ajuda internacional, insistiu na ideia de que os responsáveis foram o PSD e a restante oposição: "O que nos levou ao pedido de ajuda externa foi a crise política e o chumbo do PEC IV." 

Ataque a Cavaco Silva
Outro dos pontos fortes da entrevista foi a relação com o Presidente da República. Assim que o nome de Cavaco Silva surgiu na conversa, Sócrates quis de imediato responder às acusações de deslealdade feitas no prefácio do livro Roteiros, afirmando que não reconhece “nenhuma autoridade moral” ao Presidente da República “para dar lições de lealdade institucional”.

“Fez-me um ataque pessoal escrito menos de um ano depois de eu ter saído do Governo. Isso diz muito da atitude do Presidente da República”, acusou Sócrates, considerando que Cavaco “fez tudo para haver uma crise política” e que "está politicamente vinculado" à actual solução governativa. 

Sócrates qualificou Cavaco como um "opositor" e disse que o Presidente foi "a mão escondida atrás dos arbustos" da crise política, recordando dois episódios.

“Em 2009, nasceu na Casa Civil do senhor Presidente da República, pela primeira vez na história democrática do nosso país, uma conspiração organizada e inventada contra o Governo (...) e baseada na acusação de que o Governo estaria a espiar a Casa Civil”, disse o antigo primeiro-ministro, acusando Cavaco de nunca se ter demarcado do chamado caso das escutas e de até ter promovido o assessor Fernando Lima.

“Há um segundo momento, que é a segunda tomada de posse do senhor Presidente da República. Faz um discurso salientado as dificuldades (...) e esquecendo qualquer referência à crise internacional e até apelando aos jovens para se manifestarem”, acusou Sócrates, acusando ainda Cavaco de ter tido "dois pesos e duas medidas".

"Parem com a austeridade, parem de escavar"
Na entrevista, Sócrates disse ainda que “as consequências da crise política de 2011 estão à vista” e acusou o actual Governo de ter ido além do memorando da troika.

“O primeiro embuste é que os problemas que o país enfrentava eram apenas nacionais. O segundo é que foi o anterior Governo que nos conduziu à ajuda externa. O terceiro é [os actuais governantes] dizerem que estão apenas a aplicar o memorando assinado pelo anterior Governo”, disse Sócrates,

“O que o Governo fez nestes dois anos foi aplicar o dobro da austeridade. O Governo fez sete alterações ao memorando inicial”, argumentou o antigo líder do PS, afirmando que o documento que assinou não incluía o aumento do IVA da restauração para 23%, nem o “aumento brutal de impostos”, nem cortes de subsídio de férias e de Natal.

Sócrates defendeu também que “o país tem urgente necessidade de parar com a austeridade”: “A imagem que me ocorre quando vejo o que se passa na Europa e em Portugal é que o Governo se meteu num buraco e que para sair continua a escavar. Parem de escavar”, pediu o ex-governante. “Esta solução não resulta. Se continuarmos a escavar não cumprimos, nem na dívida, nem no défice”.

Na análise ao Executivo liderado por Passos Coelho, o futuro comentador identificou um "problema de comando político", sublinhou o "desgaste" a que está sujeito e salientou que o Governo ficará muito afectado se houver um chumbo do Orçamento por parte do Tribunal Constitucional. "Diz tudo de um Governo fazer a sua principal lei, o Orçamento do Estado, duas vezes inconstitucional."

Despesismo, BPN e PPP
Apesar da insistência dos dois entrevistadores – Paulo Ferreira e Vítor Gonçalves –, Sócrates resistiu a reconhecer erros e qualificou muitas perguntas como consequência da “narrativa” construída pela direita.

Reconhece que teve uma política despesista? “Não reconheço isso”, respondeu Sócrates.

Foi um erro nacional o BPN? “Na altura, com a informação que dispunha achei que a melhor solução era nacionalizar. A queda do Lehman Brothers conduziu a uma espiral de crise financeira. E temia que alguma coisa acontecesse naquela altura”, defendeu-se o ex-primeiro-ministro.

E a Parceiras Público-Privadas (PPP)? “Vai aí uma história muito mal contada”, respondeu Sócrates, argumentando que só lançou oito das 22 PPP rodoviárias. “Encargos líquidos futuros da PPP que eu recebi em 2005: 23 mil milhões de euros. Encargos líquidos futuros da PPP em 2012: 19 mil milhões. Os encargos futuros que eu deixei são menores do que os que eu recebi”, argumentou o antigo governante, reconhecendo, no entanto, que a introdução de portagens nas ex-Scut afectou estas contas.

O empréstimo para estudar
Já na parte final de uma entrevista que durou cerca de hora e meia, o ex-líder socialista fez ainda a defesa da sua vida em Paris, recusando a ideia de que tem uma vida de luxo.

“Tenho uma só conta bancária há mais de 25 anos. Nunca tive acções, off-shores, nunca tive contas no estrangeiro. A primeira coisa que fiz quando saí do Governo foi pedir um empréstimo ao meu banco”, explicou Sócrates, confessando que sempre teve o “sonho” de tirar um ano sabático e viver no estrangeiro.

O antigo primeiro-ministro fez ainda questão de dizer que vai fazer comentário político na RTP sem receber nada em troca e que só quer participar no debate político e contribuir para a pluralidade. “Só quem tem medo da democracia pode ter medo dos meus comentários”, disse.
 
 
 

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