Sérgio Sousa Pinto rompe com a política de Costa para a esquerda

O deputado demitiu-se do secretariado nacional do PS no que, para já, é uma posição individual. A estratégia do secretário-geral prossegue na próxima semana, apesar do cepticismo visível no partido.

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Sousa Pinto, fotografado em Maio de 2013 Miguel Manso

Dois dias depois das eleições, no dia 7, o secretariado nacional do PS reuniu-se pela última vez. Sérgio Sousa Pinto e António Costa discutiram violentamente. “Aos gritos”, conta um dos presentes. Dessa reunião saiu a estratégia que a Comissão Política aprovou. A oposição de Sousa Pinto versava sobretudo uma frase que, lida na altura, pouco passava de uma intenção: “O PS considera indispensável a clarificação das posições publicamente assumidas pelo PCP e pelo BE sobre a existência de condições para a formação de um novo governo com suporte parlamentar maioritário.” Ainda hoje, o diálogo à esquerda não passa de uma intenção, mas na altura parecia quase um bluff, para coligação Portugal à Frente ver. O deputado não via as coisas assim. Na manhã seguinte usou a sua página do Facebook para passar a mensagem.

Fê-lo com uma fotografia, que se não fala por mil palavras pelo menos sugere um regresso aos traumas da esquerda portuguesa. A imagem que Sousa Pinto escolheu mostra a Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, no dia 19 de Julho de 1975. Cheia. Não se vê, mas no palanque está Mário Soares. Esta foi a célebre manifestação da “Fonte Luminosa” (o outro nome do local) que marcou a ruptura entre o PS e a sua esquerda, representada pelo IV Governo provisório liderado por Vasco Gonçalves, há mais de 40 anos. O herói daquela tarde, quando o deputado socialista tinha três anos, foi Mário Soares. Mas a vida deu muitas voltas e colocou o herói e aquele que já foi um dos seus mais próximos discípulos, em campos diferentes. A linha política de Soares no Processo Revolucionário em Curso (PREC) é defendida agora por Sousa Pinto – um PS que se distancia do PCP e da extrema-esquerda– quando Soares se tornou num dos mais notórios defensores de uma “frente popular” depois da queda do Muro de Berlim, e do fim do império soviético.

O mundo pode ter mudado, mas o PS e o PCP só se conseguiram entender num acordo que se visse: Câmara de Lisboa, 1989. Curiosamente, essa coligação também surgiu para derrotar uma aliança PSD/CDS, e António Costa já estava na equipa socialista que concebeu esse outro “compromisso histórico”.

Mas o mais conhecido antigo líder da Juventude Socialista (JS) tem um outro olhar sobre a história. Nos últimos tempos, em várias ocasiões públicas, tem elogiado Winston Churchill, o antigo primeiro-ministro conservador britânico, sugerindo mesmo que a sua derrota em 1945, depois de ser um dos vencedores da II Guerra Mundial, é o exemplo maior de uma injustiça democrática. Até pode ser, vistas as coisas à superfície. Mas o homem que retirou Churchill do número 10 de Downing Street, Clement Atlee, era não só o líder do Partido Trabalhista, partido-irmão do PS no Reino Unido, como o homem que, ao longo do seu mandato, lançou as bases do estado social britânico, o “welfare state”, de que o PS se diz herdeiro político, e tinha como seu conselheiro principal o economista John Maynard Keynes, o teórico que inspira, ainda hoje, a maioria dos críticos à austeridade.

Sérgio Sousa Pinto é, deste ponto de vista, um político muito cioso da sua autonomia. António Guterres que o diga. Na altura, Guterres era um centrista e Sousa Pinto representava a “ala esquerda” irreverente, com o seu enorme grupo parlamentar de jovens socialistas. O debate sobre a interrupção voluntária da gravidez separou-os definitivamente. O jovem saiu derrotado. Politicamente, mas também com uma grande dose de desilusão.

Sousa Pinto atravessou o seu “deserto” em Bruxelas, no Parlamento Europeu. O partido parecia estar a dar-lhe uma “sinecura”, um “exílio”, mas ele não encarou o afastamento assim. Tornou-se um europeísta convicto. Isso ficou visível nos diálogos que manteve com Mário Soares, o seu grande apoio em Bruxelas, que resultaram no livro “Diálogo de Gerações”, editado em 2003.

Numa entrevista à Sábado, Sousa Pinto explicava o que muitos anteviram no livro - que o jovem irreverente se moderara e dera lugar a um político muito mais centrista já longe da “ala esquerda” de onde partira: “Jaime Gama costuma dizer com graça: ‘Eu não mudei, a política é que mudou.’ Não inventei essa classificação. Tenho um percurso e nunca me arrumei em alas.”

Ao fim de 10 anos, regressou, pela mão de Sócrates. É ele um dos autores da célebre ideia da “esquerda moderna” que conquistaria o partido, e o País, de sopetão, entre o Outono de 2004 e Fevereiro de 2005. Escreveu moções, escreveu programas, foi uma espécie de teórico de um Sócrates. Nunca integrou nenhum Governo, nem passou de vice-presidente da bancada, deixando que os dotes de oratória fizessem em público aquilo que a sua capacidade de persuasão política fazia em salas fechadas. Voltou a ser reconhecido.

A direcção Sousa Pinto da JS legou um centro de poder forte ao PS. Ali se formaram alguns dos quadros mais influentes, hoje, no partido, como Fernando Rocha Andrade e Marcos Perestrello. António Costa sempre apreciou a sagacidade de Sousa Pinto, que passou a integrar o órgão mais restrito da direcção socialista, o secretariado nacional.

É da cúpula que sai, agora, aparentemente em ruptura com a linha política de Costa. Sérgio Sousa Pinto não confirma ao PÚBLICO as razões. Só a demissão: “Confirmo. Reservo declarações para os órgãos do partido.”

Mas a relação pessoal entre Costa e Sousa Pinto também foi afectada. De “grandes amigos” e vizinhos num aldeamento em Fontanelas, Sintra, os dois passaram a ter uma relação muito mais distante. A ascensão política de outros ex-dirigentes da JS, como Ana Catarina Mendes e Pedro Nuno Santos (ambos escolhidos por Costa para a equipa que se tem reunido com os outros partidos), Duarte Cordeiro (que foi o director de campanha) e João Galamba (que integra o secretariado nacional) é apontada por um dirigente como causa do afastamento.

Resta saber se esta demissão provocará outras críticas à estratégia do secretário-geral. Apenas Francisco Assis se tem oposto à ideia de que o PS pode formar um Governo viabilizado por PCP e BE. “A solução mais adequada era que se constituísse um Governo da coligação que ganhou, e houvesse da parte do Partido Socialista um papel de partido de oposição”, defendeu o eurodeputado, na TVI. Não é o único a pensar assim, mas, para já, todos preferem esperar para ver o que resulta das negociações iniciadas na semana passada. O “cepticismo” é visível. Mas só Sousa Pinto decidiu bater com a porta. Para já.

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