Seis meses a fazer regressar as políticas. E a política

Portugal viveu os últimos tempos em estágio para o regresso à política pura. António Costa quis virar a página da austeridade e reverteu medidas em cascata. Mais rápido ainda foi o primeiro-ministro a apagar a herança da tecnocracia.

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O regresso da política, por António Costa Miguel Manso

Primeiro estranha-se, depois entranha-se. Num país há décadas habituado à tecnocracia, ao economês, aos números, à obsessão do défice, de repente, o clima, o tom e o discurso mudaram. Em conjunto com a inversão da política de alianças do PS, que permitiu um tipo de entendimento político com o BE, o PCP e o PEV, António Costa introduziu uma mudança substancial na forma de agir e no discurso de um primeiro-ministro que significa o regresso da política. Ainda perplexo com a mudança, o país questiona-se sobre se o Governo sobreviverá à gestão de um apoio parlamentar inédito e às exigências de Bruxelas.

António Costa passou os primeiros meses como primeiro-ministro a revogar as medidas mais carismáticas do anterior Governo da coligação entre o PSD e o CDS liderado por Pedro Passos Coelho. Virou "a página na austeridade", como costuma dizer.

A viragem de políticas sociais à esquerda resulta dos acordos bilaterais, mas também tem um claro cariz de afirmação ideológica. Tudo com uma bissetriz dominante: respeitar das imposições financeiras de Bruxelas e garantir a consolidação orçamental, pelo menos nas previsões. Assim foi possível ver o início da reversão do processo de venda da TAP e das concessões dos Transportes Públicos em Lisboa e Porto. Bem como a revisão das medidas de Nuno Crato na educação, apesar dos protestos dos colégios privados contra a revisão dos contratos de associação. E ainda o regresso das 35 horas na função pública.

Já o Orçamento do Estado para 2016 contemplou a reposição gradual de 20% por trimestre nos vencimentos da função pública, das pensões, da sobretaxa do IRS em todos os ordenados de trabalhadores por conta de outrem, a substituição do quociente familiar por uma dedução específica por IRS por filho, o reforço do abono de família e a reposição das prestações de Rendimento Social de Inserção e do Complemento Solidário para Idosos, a reposição das taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde e a reposição do IVA na restauração em 13%, a partir de Julho.

O regresso da política foi visível também na gestão do Programa Nacional de Reformas, documento estruturante com perfil de esquerda, que foi valorizado na vertente parlamentar pelo Governo. Deste modo, Costa conseguiu desvalorizar a visão puramente financeira sobre as medidas, apesar de ela estar consagrada no Programa de Estabilidade, também entregue no fim de Abril. E se era hábito os portugueses ouvirem diariamente falar de défice, a verdade é que só ao fim de três semanas de se discutirem as reformas, se soube quais as previsões do défice.

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Todas as terças-feiras de manhã, o primeiro-ministro reúne-se com o seu núcleo duro do Governo Ilustração: Mariana Soares

Mesmo assim, Costa tratou já de vangloriar-se na entrevista a José Gomes Ferreira na SIC de que em 2016 será atingido o mais baixo défice em 42 anos. Mesmo que as previsões do Governo (2,2%) saiam furadas e ultrapassem a meta de Bruxelas (2,3%), atingindo a previsão da Comissão Europeia de 2,7%. Portugal cumprirá o Tratado Orçamental e sairá do procedimento por défice excessivo.

Apostar na imagem

Pilar estruturante da acção do Governo tem sido a gestão da imagem do primeiro-ministro, senhor de uma absoluta autoconfiança que o leva a ostentar um "optimismo crónico e às vezes ligeiramente irritante", nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa. A forma como o Costa tem jogado o seu papel tem funcionado como factor de desanuviamento da vida política. Uma distensão para a qual contribuiu a eleição do Presidente, que também respira política pura e verbaliza uma atitude optimista.

Nessa estratégia mediática, o primeiro-ministro assumiu um protagonismo absoluto, deixando a sua equipa governativa para segundo plano, só servindo de trincos quando há que proteger o líder e/ou uns aos outros. Foi o caso dos ataques aos contratos de associação em que primeiro, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, e depois a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, saíram em defesa do ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues.

É esta lógica de regresso do domínio da política que leva por exemplo a que o ministro das Finanças, Mário Centeno, não demonstre o protagonismo e o perfil draconiano de alguns antecessores, de Cavaco Silva a Vítor Gaspar, passando por Ernâni Lopes e Sousa Franco. O que é facto é que, de forma discreta, Centeno tem tentado impor a linha orçamental adaptada às necessidades de negociar dia-a-dia com o BE, o PCP e o PEV, assim como fazê-lo com a Comissão Europeia.

Uma discrição tática que é secundada por Manuel Caldeira Cabral, ministro da Economia, o nevrálgico interlocutor com as empresas. E também por Pedro Marques, ministro do Planeamento e das Infraestruturas, que tutela a gestão dos fundos estruturais do Portugal 2020 - ou seja, o dono da chave do cofre que o Governo dispõe para investimento público. É, aliás, na segunda metade do ano que o Governo tenciona acelerar a distribuição de fundos comunitários. Embora em Abril já tenham sido pagos 150 milhões do Portugal 2020, o objectivo é distribuir 450 milhões até ao final do ano.

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Pelo menos uma vez por mês, o primeiro-ministro faz um almoço de trabalho com o presidente do PS e líder parlamentar, Carlos César, e com o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues Ilustração: Mariana Soares

São estes ministros que têm a responsabilidade da gestão económica num Governo onde o primeiro-ministro não quer ouvir falar de economia, acompanhados pela figura central de Vieira da Silva, na tutela da concertação social e na assunção das políticas de protecção social, uma das imagens de marca de esquerda do Governo. E pelo discreto mas incontornável secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, que tem a tarefa ciclópica e aparentemente interminável de gerir os entendimentos com o BE, o PCP e o PEV em reuniões em separado com uma periodicidade semanal.

Com o equilíbrio da maioria até ver estável e com as sondagens confortáveis, o Governo sente-se sólido para durar. Há mesmo a convicção de que "só haverá problema no dia que não forem cumpridos os acordos". Destes, resta a reposição da contratação colectiva, este ano. Já a gestão dos futuros orçamentos terá como base o Programa de Estabilidade, cujo principal factor de ajustamento é a baixa de admissões na função pública. O OE de 2017 irá beneficiar ainda do resultado dos "grupos de trabalho com o BE e do trabalho de grupo com o PCP", como se lhes referiu o primeiro-ministro.

A dúvida é saber se a economia do país reage à receita do Governo. Os indicadores económicos alertam para uma eventual derrapagem. O desemprego aumentou no primeiro trimestre para 12,4%. As previsões de crescimento do Governo eram de 1,8%, mas o Banco de Portugal já avisou que ficará nos 1,5%. Sobre a meta de défice de 1,4% em 2017, apontada no Programa de Estabilidade, há no Governo quem reconheça que é difícil de atingir. Isto para já não falar da hipótese de Bruxelas aplicar sanções ao défice excessivo de 2015.

Passado o Verão, o Governo apostará em mais medidas. Depois do Simplex pela ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, será a vez da descentralização administrativa a cargo do ministro-Adjunto, Eduardo Cabrita. Esperada é ainda a legislação preventiva e de combate ao terrorismo. E uma abertura do ano lectivo menos turbulenta.

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O Conselho de Ministros aprova legislação uma vez por mês. Nas outras semanas, as reuniões são usadas para coordenação e discussão política Ilustração: Mariana Soares
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