Segundo mandato: o tabu de Marcelo?

Com uma mão aumenta a popularidade, com a outra diz que daqui a quatro anos e três meses volta à vida civil. Mas a lua-de-mel com a esquerda parece revelar o desejo de repetir os 70% de Soares na reeleição, diz André Freire.

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A primeira cerimónia comemorativa da implantação da República da era Marcelo Nuno Ferreira Santos

Marcelo Rebelo de Sousa tem sido pródigo em declarações que parecem apontar para a vontade de cumprir apenas um mandato. Mas a sua actuação presidencial vai em sentido inverso. Num momento em que a sua popularidade atinge níveis esmagadores, o chefe de Estado voltou a insistir que daqui a pouco mais de quatro anos voltará a estar disponível para outras actividades. Será mesmo?

O exercício especulativo, ao fim de nove meses, só faz sentido porque é o próprio quem teima em arrefecer os ânimos a cada passo. Dias depois de conhecido um estudo de opinião que lhe atribui 97% de avaliações positivas, Marcelo Rebelo de Sousa andou por terras da beira e por duas vezes fez referência ao seu mandato como se fosse o único.

Em Castelo Branco, escreveu mesmo no livro de honra do Instituto Politécnico que estaria disponível para ali dar “umas aulas” quando estiver disponível, precisando que será dentro de “quatro anos, três meses e alguns dias”. Na Guarda, prometeu que estaria presente na inauguração da linha da Beira Alta remodelada se ficasse pronta antes de Março de 2021.

Pelo meio, no entanto, cumpriu a jornada naquele ambiente de campanha eleitoral permanente que o distingue da generalidade dos políticos em funções de Estado. Marcelo não acena à distância, por detrás da segurança. Ele mergulha nas multidões com o mesmo à-vontade com que um dia se atirou ao Tejo poluído quando era candidato à Câmara de Lisboa.

Felisbela Lopes, professora de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho, e André Freire, professor de Ciência Política do ISCTE, não querem pôr o carro à frente dos bois, como o próprio Marcelo disse sobre o assunto, era ainda candidato presidencial. Mas ambos vêem na actuação do chefe de Estado tudo menos indiferença ao apelo de repetir o mandato.

Certo é que, enquanto comentador e professor de Direito Constitucional, Marcelo Rebelo de Sousa chegou a defender que o Presidente da República em Portugal devia cumprir um único mandato. A 26 de Janeiro de 2014, dois anos antes de ser eleito, numa das suas prédicas dominicais da TVI, propôs a alteração do mandato presidencial de cinco para sete anos, mas sem possibilidade de recandidatura. No mesmo sentido, aliás, do que preconiza o seu assessor político, o constitucionalista António Araújo, para garantir uma maior independência da presidência.

As suas declarações públicas mais explícitas sobre o assunto enquanto Presidente da República foram feitas em Agosto, a dias de cumprir seis meses em funções, numa visita às ilhas Selvagens. Questionado sobre esta deslocação no início do mandato, ao contrário dos seus antecessores, respondeu que isso significa que "tudo o que tiver que ser feito deve ser feito em cinco anos". E tem feito.

A proximidade ao povo – e o seu elogio constante - é apenas uma das fórmulas que mais estimula. Não que seja um mero calculismo político, dizem os analistas ouvidos pelo PÚBLICO. “Marcelo quer ser popular agora, é um traço de personalidade”, diz Felisbela Lopes, corroborada por André Freire, que vê “genuinidade” na actuação presidencial.

Para Freire, nem se trata apenas de uma estratégia pessoal, mas institucional: “Está a recuperar prestígio, popularidade e simpatia para a Presidência da República”, quando esta tinha atingido o ponto mais baixo de sempre.

De acordo com o barómetro da Eurosondagem disponível no site da empresa, antes da tomada de posse de Marcelo, a Presidência contava com 26,7% de opiniões positivas, contra 40,8% de negativas. Logo no mês seguinte, a situação inverteu-se de forma acentuada (68% de positivas e 12,5% de negativas), atingindo o ponto mais alto em Novembro, com 70,7% de opiniões positivas (contra 13,7 de negativas).

Seja como for, a sua popularidade será sempre um capital para o futuro: “São créditos que vai acumulando para depois usar como quiser”, anota a professora do Minho.

As lições de Soares e Cavaco

No plano político, os dois analistas também vêem que tudo o Marcelo tem feito - como “pólo aglutinador de equilíbrios”, que “faz a gestão de todos os partidos, da esquerda à direita”, nas palavras de Felisbela Lopes -, o embala para um segundo mandato. Freire é mesmo “tentado” a pensar que o desejo do chefe de Estado é repetir o nível de vitória de Mário Soares em 1991, quando foi reeleito com 70,35% de votos, com o apoio tácito do PSD de Cavaco Silva, que não apresentou candidato.

“A estratégia de alargar a sua base de apoio costuma estar ligada à vontade de ser reeleito”, considera o politólogo, para quem a actuação de Marcelo, “a continuar no registo do que temos visto” nestes nove meses “dá-lhe força” para se recandidatar, contando com um eventual apoio do PS.

Freire vê em Marcelo “algumas semelhanças” com o primeiro mandato de Mário Soares, quando Cavaco Silva liderava o seu primeiro governo, minoritário. Na altura, recorda, havia no parlamento uma maioria de esquerda juntamente com o PRD, o partido eanista que fez aprovar uma moção de censura ao Governo. A ideia, proposta ao então Presidente, era o Executivo de Cavaco Silva ser substituído por um governo minoritário do PS ou de coligação com o PRD, que teria o apoio parlamentar do PCP. Mas Soares, indo contra o seu próprio partido, recusou e dissolveu o parlamento, convocando eleições antecipadas que deram a primeira maioria absoluta a Cavaco Silva.

Agora, continua Freire, “Marcelo está a dar apoio à solução política, cumprindo o que disse na campanha eleitoral, de que a sua principal missão era normalizar o sistema político”.

Embora sem o mesmo grau de semelhança, também o primeiro mandato de Cavaco Silva como Presidente da República foi marcado por aquilo que o chefe de Estado então chamava de “cooperação estratégica” com o Governo de José Sócrates. Logo na tomada de posse deste primeiro-ministro, Cavaco elogiou o seu “espírito reformista” e prometia-lhe uma “cooperação leal e proveitosa”. Sócrates, por seu lado, “agradecia o comportamento absolutamente impecável da Presidência da República”.

Neste caso, no entanto, o PS tinha maioria absoluta e o papel do Presidente era naturalmente mais apagado, pela conjuntura política e pela personalidade do chefe de Estado. Certo é que, tanto num caso como no outro, os “namoros” iniciais entre Presidente e primeiro-ministro acabaram por azedar… e muito.

Factores de risco

A decisão de se recandidatar, Marcelo só deverá tomar mais para a frente, “perto do fim do mandato”, como disse durante a campanha eleitoral. E dependerá sempre das condições conjunturais e pessoais, sublinha Felisbela Lopes.

“O Presidente tem uma visão muito exigente do cargo, e isso pode dificultar um segundo mandato”, considera a analista, exemplificando com a frente diplomática, “muito activa em diferentes geografias”, e a frente interna, em que “tem feito um esforço enorme para diversificar o mais possível as regiões visitadas”, para falar apenas das viagens. “Fisicamente é muito exigente, porque ele estica geografias e prazos”, com dias longos, cheios de actividades diversificadas e pouco entrecortados com dias sem agenda e menos ainda de descanso.

Essa hiperactividade assumida pode ser desmotivadora de um segundo mandato tendo em conta o factor idade, sublinhado pela investigadora e já referido algumas vezes pelo próprio Marcelo. Depois de imprimir velocidade supersónica ao primeiro mandato, iniciado aos 67 anos, pode ter dificuldade em mantê-la ou justificar uma redução substancial de ritmo.

No entanto, Marcelo venceu esta primeira eleição com a mesma idade de Cavaco Silva quando foi eleito a primeira vez. Jorge Sampaio tinha menos 10 quando chegou a Belém e Mário Soares tinha menos cinco – 62 anos. Mas três anos depois de cumprir dois mandatos ainda foi eleito deputado no Parlamento Europeu e nada o impediu de se recandidatar à Presidência aos 81 anos, com o apoio do seu partido.

Outro factor de risco é a degradação do seu próprio capital político, por razões de conjuntura difíceis de antever, mas sempre possíveis, como a história mostra. E Marcelo não quererá correr o risco de sair do cargo pela porta pequena. Pelo contrário. Por isso, voltemos a Dezembro de 2016, faltam quatro anos e um mês para as próximas presidenciais, que é como diz Freire: “Falta tudo”. Mas também, como sublinha Lopes: “Tudo será possível se ele for condicionando tudo em várias frentes”. Como tem feito.

 

O que ele disse sobre um segundo mandato

“É pôr o carro à frente dos bois. Quem mais ordena é o povo”
6 de Janeiro de 2016, debate presidencial com Paulo Morais na TVI24 

“Quem exerce o primeiro mandato, a partir de um determinado momento desse mandato, se pensar em recandidatar-se, é determinado ou condicionado por esse pensamento”, o que “não é bom”.

“Em rigor, eu não poderia dizer isso [prometer a recandidatura] dessa forma, porque acho que é uma decisão, primeiro, que supõe que seja eleito pelos portugueses – não se pode pôr o carro à frente dos bois. Em segundo lugar, supõe que uma decisão dessas nunca seja tomada antes de perto do fim do mandato”.
11 de Janeiro de 2016, numa sessão pública da candidatura em Castelo Branco

“Ao fim dos meus cinco anos de mandato, tem de me arranjar um lugarzinho aqui”. Cinco ou dez anos, perguntam-lhe. “Para já cinco, para eu ainda ter as mãos lestas, que isto exige rapidez de mãos. Depois de dez eu temo que já esteja um bocado gasto… vamos a ver”.
23 de Abril de 2016, em Beja, na primeira jornada do Portugal Próximo

"Não estou à espera de um segundo [mandato] para depois fazer o que não consegui no primeiro".

"Sou livre, tenho as mãos livres para fazer exactamente aquilo que entender que devo fazer sem pensar em recandidaturas. Do mesmo modo, também não penso isto: 'não faço agora e fica para daqui a seis, sete anos, oito anos'. Tudo o que tiver que ser feito é feito em cinco anos", afirmou.
30 Agosto de 2016, nas Ilhas Selvagens, que os seus antecessores só visitaram no segundo mandato

“[Quando terminar o mandato] terei 72 anos, ainda a tempo de pensar numa startup, por que não?”
4 de Outubro de 2016, durante a visita à Web Summit, em Lisboa

“Aceitei e deixei logo escrito [livro de honra], para não haver dúvidas nenhumas” [que estará disponível], "daqui a quatro anos, três meses e uns dias" para “dar umas aulas” no Instituto Politécnico de Castelo Branco.

“Eu espero em 2018 estar na inauguração da linha Guarda-Covilhã, mas espero ainda antes do fim do mandato – se puderem antecipar, em vez de ser em 2022 ser em 2021, até Março – para ter oportunidade de ver a remodelação da linha da Beira Alta”.
5 de Dezembro de 2016, durante o Portugal Próximo na Beira Interior

 

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