Se não quer irritar-se, não leia

A nossa grande questão permanece: é possível Portugal governado à esquerda e na Europa?

Não há otimista mais irritante do que aquele que teve razão. Mas há uma boa razão: o otimista só tem a si mesmo. Já o pessimista tem toda uma sociedade — antes, durante e depois de se provar que estava errado. Se o pessimista acerta (alguma vez terá de ser) é levado ao pedestal. Se o otimista acerta, resta-lhe escrever uma crónica a dizer que acertou. Hoje é como se fosse o dia do meu aniversário. Para ser mais irritante, é mesmo.

O que se passou em Portugal durante o já chamado “Festival da Sanção”, porém, foi para lá de questões temperamentais. Não houve pessimismo desinteressado. Foi pessimismo com narrativa. Cada cor seu paladar: para alguns interessava a narrativa de que a esquerda não podia ter boas contas e “a Comissão ia cair em cima do governo”, como dizia José Gomes Ferreira (não o autor do “João sem medo”, antes pelo contrário). Para outros interessava a narrativa de que a UE é irreformável e irremediavelmente oposta a tudo o que for de esquerda (“O sonho acabou. A União Europeia é um projecto falhado”, decretava Francisco Louçã) e daí a Comissão ir cair em cima do governo. Duas perspetivas, a mesma possibilidade: o governo não aguentava com o peso da Europa.

E quanto aos jornalistas, mesmo que não partilhem o nome com excelentes escritores de fantasia? Bem, precisaríamos de uma longuíssima conversa que não cabe nesta crónica, mas que se poderia resumir num parágrafo. Que as sanções só se decidiam quando decidiam, e não antes. De documentos oficiais que registam o incumprimento das metas e mais nada, há que explicar isso mesmo. Se a UE é tão importante para nós, mais importante ainda é estudá-la antes de optarmos por uma das caricaturas à disposição sobre ela. Ler os tratados não custa nem prejudica. Coisas irritantes.

Aquilo por que ninguém esperava era política. Se a UE é irreformável, não há política. Se a Alemanha ganha sempre, não há política. Se há uma “Bruxelas” homogénea à espera de nos lixar, não há política. Se já estamos derrotados à partida, não vale a pena lutar. Mais vale abandonar o jogo. Qual? Um de dois: o jogo da governação à esquerda, ou o jogo do projeto europeu. Diz a narrativa.

Mas felizmente há política. E quando há política, às vezes ganhamos e às vezes perdemos, como os alemães e os outros. Talvez a explicação mais simples seja a verdadeira: Bruxelas não é homogénea e nós não somos vítimas. Às vezes até somos culpados da maneira como Bruxelas é.

Por isso foi penoso ver José Gomes Ferreira adiar as suas profecias para quando nos cortarem os fundos ou exigirem mais cortes. Foi menos penoso ler Francisco Louçã optar por escrever exclusivamente sobre a pintura de Hieronymus Bosch no dia das não-sanções. Bosch é bom. Mas também não é mau gostar de história da arte e não ter de a usar como recurso para disfarçar a falta de discurso.

A nossa grande questão permanece: é possível Portugal governado à esquerda e na Europa? A resposta é: está longe de ser um mar de rosas nos dias que correm. Mas é muito superior a Portugal governado pela direita ou Portugal fora da UE.

Espero devotadamente ter sido fiel ao título. Agora esta crónica vai de férias por quinze dias. É só não estragar.

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