Saudades do guião de reformas de Portas

É inacreditável que o Governo se tenha exposto ao ridículo de produzir, com o Programa Nacional de Reformas, tamanho monumento à vacuidade, ao lugar-comum e ao copy-paste.

1. O Programa Nacional de Reformas (PNR) que o primeiro-ministro apresentou esta semana é um dos documentos mais indigentes dos últimos anos da governação. Tão indigente que o famigerado Guião para a Reforma do Estado, de Paulo Portas, até parece uma obra-prima do pensamento e da estratégia política. É inacreditável que o Governo se tenha exposto ao ridículo de produzir tamanho monumento à vacuidade, ao lugar-comum e ao copy-paste. E é incompreensível como uma mão cheia de ministros inteligentes e experientes puderam assinar um power-point que não mereceria mais do que um suficiente menos a qualquer estudante de uma escola superior.  

Ninguém estaria à espera de que o programa deslumbrasse pelo rasgo ou pela originalidade. Portugal anda há anos demais a fazer diagnósticos para que dali pudesse sair uma ideia fora da caixa. O que se esperava era apenas um programa assertivo, determinado e focado no essencial. Seria normal e coerente que o seu teor absorvesse a natureza programática do Governo, que abolisse de vez as veleidades da liberdade de escolha nas escolas e reafirmasse a descida das taxas moderadoras, por exemplo. Mas seria igualmente normal e coerente esperar que o programa tivesse, ao menos, uma única medida ousada que se aproximasse do conceito de reforma. E que tivesse presente a ideia de que o crescimento baixo está para durar e o país não dispõe de condições para manter um Estado com estas dimensões. Ora, o PNR não tem nada disso. Não é tão palavroso como o guião de Portas, mas é muito mais vago. Qualquer burocrata da mais esconsa repartição do Estado o conseguiria fazer.

Ao longo dos 53 slides do power-point que o revela, o Programa limita-se a expressar desejos e estados de alma. O Governo quer, por exemplo, “modernizar o sistema de ensino e os modelos e instrumentos e aprendizagem”. Ora, quem não quer? O problema é que em lado algum se diz como se moderniza. O Governo ambiciona “desenvolver ecossistemas que potenciem o aparecimento e crescimento de start-ups” e “promover a captação de Investimento Directo Estrangeiro (IDE), nomeadamente em actividades de inovação”. Claro que sim. O anterior também ambicionava e os que lhe sucederem também o hão-de ambicionar. Mas como? Com que recursos?

O PNR não ataca nenhum dos problemas reais do país. Não se dirige às gorduras do Estado central; circunscreve o desígnio da administração pública ao imperativo (saudável) de simplificar; não refere um único corte, uma única medida de fundo que torne a orgânica do Estado mais operacional; não apresenta uma ideia válida para valorizar o território – nem sequer a reforma profunda que o seu ministro adjunto Eduardo Cabrita está a liderar para permitir a eleição dos presidentes das Áreas Metropolitanas; não produz uma única linha sobre o sector público empresarial, nem sobre a reforma fiscal (uma breve referência à fiscalidade verde, apenas). É uma imensa desilusão. A prova de que o Governo vive na doce crença de que a tempestade passou e o país pode viver à bolina. É verdade que para lá das críticas que ouviu na concertação social – é vago, é genérico, é omisso -, Costa não foi alvo do bombardeamento de críticas que se ouviram quando Portas divulgou o seu guião. Mas merecia-as. Porque ao lado do Programa, o Guião é uma obra-prima.

2. Pedro Passos Coelho deve andar a mastigar na cabeça o mito da Fénix que renasce das suas próprias cinzas – ou das cinzas da fogueira da surpreendente coligação da esquerda. Ao contrário da determinação e clareza de convicções que mostrou como chefe de governo, Passos é hoje um homem titubeante, incapaz de conceber um plano coerente e metódico para gerir o seu renascimento. Errou ao não antecipar a génese do governo de Costa. Errou ao colar-lhe o anátema da ilegitimidade. Errou ao acreditar que seria uma coisa breve. Mas se estes erros foram comuns a muita gente insuspeita de partidarismos, o que de alguma forma o desculpa, a sua tentação em despir-se da imagem de homem frio, que pedia a “libertação” da sociedade do jugo do Estado, que considerava o queixume contra os impostos ou os cortes salariais uma manifestação “piegas” de um povo mole está a matar-lhe a essência. Os seus próximos garantem que no PSD não vai haver mudanças de rumo, porque Passos “não é de plástico”, mas essa súbita devoção do líder à social-democracia o que é, senão uma tentativa de branquear o passado?

Agora que reconhece a legitimidade do Governo e percebe que António Costa, protegido pelo Presidente, pode estar para durar, Passos não sabe nem como nem quando poderá renascer. Na essência, ele é o que foi no passado – o que o leva a chumbar no Parlamento votos de protesto contra a intolerável violação dos Direitos Humanos em Angola ou a exigir que o Estado não se deve preocupar com o destino do sistema financeiro do país. A social-democracia que agora invoca é apenas uma máscara para o PSD se sentir melhor neste tempo em que a política e o país se sentem melhor à esquerda.

Na mais longa e talvez mais dura travessia do deserto que se anuncia, Passos terá no entanto mais oportunidades de renascer se continuar a ser a Fénix que foi no governo. O país precisa de uma alternativa liberal que force o sistema a manter na agenda política uma política financeira mais rígida, um discurso económico mais premente e um espírito de reforma mais alargado. Só assim, se alguma coisa correr mal no Governo, Passos poderá provar que nas actuais circunstâncias ele tem a solução nas mãos.

3. Quanto mais se conhece a obra de António Lamas nos Parques de Sintra, mais se aplaude a decisão do Governo de o afastar da gestão do eixo Ajuda-Belém e do CCB. Porque o que estava em preparação era mais um inominável processo de desapropriação do património histórico e cultural em favor de uma lógica estritamente financeira. Os monumentos e os museus, escreveu no Público Luís Raposo,  são “reservas de soberania que devem ser colocadas ao serviço da emancipação cidadã”. Na óptica de António Lamas, porém, esses bens são apenas fontes de receita. Ora nessa lógica, não há lugar para a memória nacional, para a educação, para o usufruto da cultura. O que há são máquinas de depenar turistas e de tornar o acesso ao património privilégio das classes mais abastadas.

Em Sintra, por exemplo, o acesso ao parque e ao Palácio da Pena custa 55 euros a uma família com dois filhos. Cada criança com mais de cinco anos paga 12.5 euros para entrar. Pergunta-se: quantas famílias portuguesas se podem dar a este luxo? Muito poucas. Ao afastar da memória histórica os cidadãos mais desfavorecidos, a política de António Lamas pode enriquecer os cofres das empresas gestoras da cultura, mas fá-lo através de um processo de exclusão tão imoral como ilegítimo. O Palácio da Pena é uma herança nacional, à qual todos têm de ter acesso. João Soares pode por isso ter sido arrogante e bruto na forma como despediu Lamas. Mas ter salvo Lisboa e o país de mais um desses planos nos quais o Estado age como um explorador colonial do património público é uma medalha que pode ostentar no curriculum.

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