Rupturas. À direita e à esquerda

A capacidade política de António Costa, a sua endurance e a sua determinação ficaram atestadas sem espaço para qualquer dúvida.

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1. Na noite de 4 Outubro, animados por uma vitória já esperada mas, mesmo assim, saborosa ao fim de quatro anos de austeridade, a anterior coligação PSD-PP suspirou de alívio. Depois de uma campanha perfeitamente orquestrada para atrair o centro na linguagem (Passos Coelho elegeu a desigualdade como um dos grandes objectivos da sua segunda missão), vazia de conteúdo e cheia de falsas promessas, teria à sua disposição um Partido Socialista vergado pela derrota, com uma nova liderança mais disponível para “salvar” a Pátria, servindo de apoio ao novo Governo. O raciocínio seria válido, porventura, se fosse outro o líder socialista. Francisco Assis, que reflecte bem nos seus escritos sobre os conceitos que definem o centro-esquerda e a democracia ocidental, citando Bobbio, seria, precisamente por isso, um líder fraco e maleável. Sem qualquer antipatia pessoal, os líderes não citam teóricos (embora seja recomendável que os leiam) para afirmar as suas posições, e a crise europeia está a provocar uma verdadeira tempestade na paisagem política dos seus Estados-membros. Imagina-se e até se desculpa a sua frustração, quando perceberam que a estratégia socialista seria outra, pela qual ninguém esperava. Traduz-se numa profunda mudança no sistema de partidos, que pode ser duradoura ou acabar por revelar-se um engano. Mas não se pode desculpar o PSD de duas coisas fundamentais que contribuíram para a situação que o fez entrar em choque. Durante quatro anos Passos Coelho, que se vê a si próprio como um líder com uma missão, recusou qualquer acordo com os socialistas, como fazem os líderes que têm uma missão e querem cumpri-la sem a adulterar. Quando Cavaco Silva tentou uma conciliação entre o PS e o Governo para encontrarem pontos comuns nas reformas, teve com certeza mais esperança na maleabilidade de Seguro do que na vontade de Passos. De qualquer modo, a ideia de fazer do PS uma muleta da coligação nunca passou pela cabeça do novo primeiro-ministro. E é caso para perguntar: qual das duas soluções, o “bloco central” alargado ou uma coligação com a esquerda radical, seria melhor para evitar um destino pouco feliz para o PS, esvaziando-o para a esquerda e para a direita. Com Soares, o “bloco central” foi criado para enfrentar uma crise de pagamentos insuportável e não para governar depois dela.

2. A segunda questão é a ideologia que enformava a missão do anterior primeiro-ministro. O programa de ajustamento deu-lhe jeito para justificar uma “ruptura” dentro do seu próprio partido, deixando cair a sua versão mais social-democrata para impor uma visão neoliberal da economia e da sociedade, empurrando o PSD para a direita. Pôde fazer esse corte, que pôs de cabelos em pé a muitas figuras do velho PSD, por ser um líder forte. Poderia ter compreendido que tinha à sua frente um líder igualmente forte, disposto, também ele, a operar uma ruptura nas águas mornas da política portuguesa. Foi o que Costa fez, cumprindo todos os preceitos constitucionais e democráticos e conseguindo um “feito histórico” que não era considerado como possível.

Durante anos e anos o PCP “serviu” a direita, ao estar sempre contra o PS, definido como o seu “inimigo principal”. Depois do Governo anterior, seria difícil fazer a mesma coisa sem desiludir o eleitorado que lhe resta. Jerónimo, com toda a sua simpatia, é um duro e um crente na convicção de que o marxismo-leninismo viria a ter um segundo fôlego na próxima crise do capitalismo (como ensinava Marx, embora se tenha enganado). Era uma questão de fé num passado que não voltará. Percebe-se a sua incomodidade. O peso da sua história prende-o ao passado e não tem uma ideia que se encaixe na realidade económica e social das democracias. Este será o maior risco que Costa enfrenta à sua esquerda, não porque Jerónimo esteja a enganá-lo deliberadamente, mas porque faz parte da natureza das coisas. É bom lembrar que hoje a capacidade de mobilização do PC está quase exclusivamente centrada nos funcionários públicos e nos trabalhadores das empresas públicas. Como dizia, sempre com enorme vigor, Silva Lopes, o PCP defendia os protegidos e pouco ligava aos desprotegidos. O Bloco é outra coisa. Tem uma história bastante mais pequena e muito menos “gloriosa” de oposição ao sistema capitalista e às democracias liberais. Pode mais facilmente adaptar-se à realidade europeia, seguindo o exemplo do Syriza, mesmo que a sua palavra seja menos fiável do que a de Jerónimo, a sua maleabilidade é maior.

3. António Costa sabe que as obrigações europeias que vai ter de cumprir tanto deixam indiferente o Bloco como o PCP. Como sabe que a instabilidade europeia e mundial podem fazer falhar as previsões mais optimistas. Mas a Europa é o quadro em que tem de agir em muitos domínios. Uma coisa é certa, a forma como geriu o caminho para esta mudança radical: a sua capacidade política, a sua endurance e a sua determinação ficaram atestadas sem espaço para qualquer dúvida, confirmando as razões pelas quais era ele o “desejado” e o mais brilhante socialista da sua geração. A direita entrou em histeria e passou ao insulto, mesmo alguma que se previa mais moderada. O PS aparou o golpe com alguma turbulência que rapidamente desapareceu, como se provou nas votações da Comissão Política e da Comissão Nacional (foi aí que Assis percebeu que estava sozinho). Nada o conseguiu perturbar ou desviar da trajectória que definiu. Provou que tem nervos de aço. O trabalho que desenvolveu com o novo ministro das Finanças, Mário Centeno, e outros economistas competentes ao longo de meses permitiu-lhe estar preparado para as negociações à sua esquerda. O governo que escolheu é moderado e, no geral, parece competente. O discurso que proferiu no Palácio da Ajuda foi claro, realista, sereno mas também mobilizador.

4. Se Marcelo for eleito, Costa terá um forte aliado institucional para ir resolvendo as curvas mais apertadas. Até agora, em todas as suas intervenções, Marcelo apenas demonstrou bom senso, independência e uma visão centrista que pode ajudar a “reunir” de novo o país. Em profundo contraste com o comportamento de Cavaco Silva, crispado, amuado, ressabiado, desorientado, anunciando um triste fim para a sua presidência, que foi a mais impopular desde a democracia. Falhou na tentativa de criar consensos entre o Governo e o PS (nem Passos nem a maioria do PS os queriam). Tergiversou entre as suas convicções keynesianas e o programa liberal do Governo. Nesta fase final, apenas usava da palavra para se auto-elogiar e para tentar apagar as nódoas que ficarão na sua biografia. O diálogo nunca foi o seu forte, mas nos últimos dias ultrapassou tudo o que se poderia imaginar.

5. Portugal tem de se manter fiel às alianças que definem o seu espaço político e estratégico: a União Europeia e a NATO. Tem de estar presente, se quer contribuir para as respostas aos desafios enormes que a Europa enfrenta. O PCP habituou-se a utilizar, desde o tempo de Cunhal, uma bengala para afastar as questões incómodas sobre o regime soviético, com os seus crimes e a sua miséria: “O que nos interessa é Portugal”. Pode continuar a dizer a mesma coisa? Mas quando ouvimos Louçã dizer com um ar de quem nos quer orientar para a verdade, que a questão do apoio militar à França contra o Daesh nem sequer se põem, por tão absurda que é (diz ele), ficamos a pensar que não é só no défice que António Costa vai ter muito trabalho. Terá também à sua frente uma direita ainda ansiosa de vingança, que aposta tudo na inevitabilidade de o PC e o Bloco roerem a corda, abrindo as portas a novas eleições. Se continuar com esta estratégia e o Governo não cair tão depressa, não irá longe.

A minha geração, que lutou contra o fascismo e contra o golpe comunista depois do 25 de Abril, tem muita dificuldade em olhar para o PCP com a mínima boa vontade. Com as gerações mais novas talvez seja diferente. Imagino muita gente a perguntar-se a si própria quem é aquele senhor careca e de barbicha que está em cima da cabeça de António Costa no cartaz da JSD. Mas, como sempre em democracia, não há soluções perfeitas.

Jornalista

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