Remar contra a maré

Presume-se que terá sido a inesgotável habilidade política do primeiro-ministro que permitiu desatar o nó da corda esticada na maratona negocial de sexta-feira, embora se presuma que ondas revoltas poderão ainda levantar-se durante o debate na especialidade até à votação final do Orçamento.

Até que ponto as preocupações sociais traduzidas no Orçamento do Estado para 2017 — apesar do gradualismo na eliminação da sobretaxa do IRS ou no aumento das pensões, por exemplo — irão sobreviver ao anémico crescimento económico interno, aos constrangimentos externos e, sobretudo, à doutrina austeritária germânica que continua a governar a Europa? Eis talvez a questão mais relevante que se poderá colocar ao exercício de equilibrismo orçamental de Mário Centeno, tão difícil de digerir — e aparentemente tão mal gerido até António Costa ter regressado da China — pelos parceiros do Governo socialista (sobretudo pelo PCP).

Presume-se que terá sido a inesgotável habilidade política do primeiro-ministro que permitiu desatar o nó da corda esticada na maratona negocial de sexta-feira, embora se presuma que ondas revoltas poderão ainda levantar-se durante o debate na especialidade até à votação final do Orçamento. Mas mesmo com todo o génio de sobrevivência de Costa, persiste o milagre em suspenso da sobrevivência do Governo, entalado entre as exigências dos seus parceiros de esquerda e as imposições de Bruxelas e Berlim. Até quando — e como?

Mergulhada numa crise existencial sem precedentes, abalada pelo “Brexit” e as derivas populistas que a atravessam de Budapeste e Varsóvia a Paris, a Europa parece incapaz de encontrar um caminho reunificador. E a nossa fragilidade económica, a nossa condição periférica, tendem a expor-nos cada vez mais aos ditames erráticos e suicidários dessa Europa que perdeu o rumo. Basta ver o destino trágico da Grécia — e a humilhação e impotência com que se confronta o Syriza — para interiorizarmos os temores do desconcerto europeu.

Não temos alternativas fora da Europa (e, tanto quanto é possível presumir, fora do euro). Mas até onde será possível influenciar o curso dos acontecimentos — e chegar até ao objectivo indispensável da reestruturação da dívida, essa expressão ainda proibida — sem um eixo de aliados do Sul, da França à Itália, decididos a remar contra a maré? Em Itália, a estrela de Renzi está em queda e ameaça apagar-se no referendo de Dezembro, enquanto a França entrou em plena turbulência pré-eleitoral (para onde caminha também a Alemanha) com uma esquerda em agonia e uma direita acossada pelas sereias do extremismo (à excepção de Alain Juppé, o único candidato respeitável da direita às presidenciais de 2017).

Pessimismo da razão, optimismo da vontade, preconizava Gramsci. Mas o optimismo da vontade será insuficiente se não tivermos a consciência do mundo próximo — e também longínquo — que nos envolve. Remar contra a maré, sempre, mas sem o provincianismo serôdio de quem se fecha numa concha insular, como acontece com a maioria da nossa classe política (à esquerda ou à direita), reduzindo a sua intervenção a optimismos beatos, a utopias sectárias ou ao ressentimento de órfãos do poder. Não fomos ainda atacados, felizmente, pela praga do populismo, mas padecemos do simplismo e do maniqueísmo com que encaramos a realidade, pintada a um grosseiro preto e branco.

P.S. — Vi já tardiamente e revi logo de seguida Cartas da Guerra, um filme de Ivo Ferreira (que ainda permanece em Lisboa no Corte Inglés). É das obras mais admiráveis do cinema português das últimas décadas, um testemunho ímpar sobre a memória da guerra colonial, cuja assombrosa beleza visual, ao nível dos grandes clássicos, tem a marca de um director de fotografia chamado João Ribeiro. Se ainda não viu, caro leitor, seria imperdoável perdê-lo.

Jornalista
vjsilva@netcabo.pt

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