Rangel: “Jesus não tinha projecto político, mas era um provocador da política”

Jaime Gama, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, criticou “a falta de dimensão antropológica genérica que é profundamente incompatível com a noção de povo de Deus”.

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Passos Coelho e Rui Rio na apresentação do livro de Paulo Rangel nFactos/Fernando Veludo
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Paulo Rangel apresentou nesta quarta-feira o livro "Jesus e a Política, Reflexões de um Mau Samaritano" nFactos/Fernando Veludo

Paulo Rangel convocou os portuenses para uma reflexão sobre Jesus Cristo e a política, um tema muito pouco abordado em Portugal e que dá título ao mais recente livro do eurodeputado, apresentado nesta quarta-feira, no Palácio da Bolsa, no Porto, numa sessão que teve casa cheia e que surpreendeu pela brilhante intervenção do ex-ministro socialista Jaime Gama, um dos apresentadores do livro.

Na reflexão que faz no livro, que o autor denomina “ensaio de um ensaio”, Rangel diz que o “Evangelho não contém um modelo político, não integra um discurso total ou totalitário, determinista e conformista": "Mas que, ao invés, está aberto a várias concepções do mundo e da vida, dos humanos e do seu desenvolvimento”. E que Jesus nos dá a chave para lidarmos "com todo e qualquer regime político, sabendo como sabe, por experiência própria que a organização política é muitas vezes um dado pré-existente sobre o qual a pessoa-indivíduo não consegue actuar”.

Intitulado Jesus e a política: Reflexões de um mau samaritano, o livro, conta Paulo Rangel, mostra que “o grande drama do poder político ante a mensagem cristã – ou melhor, ante a pessoa e a mensagem de Jesus – é que esta não é um concorrente e não joga no mesmo domínio ou no mesmo terreno. Insisto, pois aqui reside a centralidade desta leitura que aqui partilho: a política não compreende Jesus, a política não digere Jesus, a política não consegue aliciar nem recrutar Jesus. Mas intui e pressente que a sua aspiração à totalidade, a sua intenção à radicalidade a ameaçam e põem em risco”.

Para o eurodeputado do PSD, “Jesus não é ingénuo: é puro, desprendido e manso, mas não é ingénuo. E não se deixou nem se deixa cair nas malhas da política. Não que veja a política como algo de necessariamente mau, desprezível ou sujo; apenas que aquela radicada aspiração à plenitude transcende e supera a limitação endógena dos quadros e termos desse corpo do humano”. Isto para concluir que “Jesus não é político nem faz política, mas não deixa de ser politicamente perturbador e politicamente relevante. A política, mesmo quando marcada pelos valores da liberdade e da democracia, há-de ser hostil a quem abala os seus padrões, interpela os seus parâmetros, desconcerta as suas categorias, se põe ostensivamente fora do campo de acção e influência”.

Segundo o autor, “Jesus e o seu ensinamento estão de tal maneira alheados dos limites quase físicos da política que representam um marco de ‘provocação à política’, de ‘provocação’ política, de ‘pro-vocação’ política”.

Jaime Gama, um dos convidados para apresentar o livro do eurodeputado, disse que a leitura que é feita de Jesus por Paulo Rangel é uma leitura que “desubstancializa a mensagem cristológica que a torna excessivamente frágil, ao ponto de não permitir sequer a elaboração, por exemplo, de uma doutrina social da Igreja. A doutrina social da Igreja é fortemente questionada neste texto, é severamente questionada neste texto, em que é considerada uma excrescência na medida em que o Paulo Rangel sublinha na mensagem de Jesus apenas o elemento fragmentado de certas parábolas e recusa a totalidade (…) e isso impede, em termos teológicos, a possibilidade do Espírito Santo que há na Igreja e de levar à Igreja a possibilidade de definir uma doutrina inspiradora para a responsabilidade dos homens no quadro da criação”. Agnóstico - assim foi apresentado o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros -, Gama diz que “estamos perante um texto louvável, mas um texto redutor, porventura, demasiado espiritualista, demasiado individualista, demasiado egocêntrico na utilização que faz do texto neotestamentário e não enquadrando tudo num contexto mais vasto e mais geral que é aquilo que constitui na verdade a presença testemunhal da Igreja de Cristo na sociedade humana e no próprio ordenamento cósmico, desde a sua origem até ao Apocalipse”.

E Jaime Gama conclui que “o texto de Paulo Rangel mais do um texto teológico, é um fundamentalmente um texto político”. Antes de dar a palavra ao seu filho, João Gama, o ex-ministro do PS deixou uma outra crítica a Rangel, apontando-lhe a falta de “dimensão antropológica genérica, que é profundamente incompatível com a noção de povo de Deus."

João Gama, professor de direito fiscal na Universidade Católica de Lisboa, fez uma interpretação diferente: “Aquilo que o Paulo Rangel não diz e que eu penso que ninguém diz, é que Jesus não é um político. Jesus não é o Pablo Iglésias do Podemos, ou seja, Jesus não finge que não está na política e isso é parte unânime”. E em nome da Ciência Política, lançou uma provocação ao eurodeputado: é saber se “Jesus não será o político total ou utilizando terminologia da política caseira, se Jesus não é como aqueles políticos que ganham todas as eleições, mas que não são políticos por acaso, mas já ganharam várias eleições com maiorias absolutas”.

Pegando nas palavras do autor do livro, que disse que “Jesus não tem um projecto político”, João Gama contrapôs a posição do cardeal Martini, plasmada no livro O Sonho de Jerusalém, e que diz que “Jesus tem um projecto político e que angaria pessoas, tem a sua distrital, vai caminhando e juntando mais pessoas, mas depois percebe que não é bem a teologia dominante o que está a dizer". 

João Gama usou depois uma frase de Rangel - "Mais do que uma inteligência política, Jesus joga com a surpresa na política” - para dizer que essa surpresa é o amor. "É um amor que aniquila o inimigo, não é só dar a outra face, é a destruição da inimizade do inimigo”, defende o professor universitário e católico, que pergunta “se essa não será a melhor arma política que todos nós gostaríamos de ter”.

Num tom descontraído, João Gama cavalgou uma ideia deixada pelo eurodeputado e partilhou-a, dizendo que “Jesus é um provocador da política”. E questionou: “Qual é a maior provocação que Paulo Rangel faz neste texto?", lançou, sem dar a resposta. "Onde eu mais discordo [de Paulo Rangel] no texto são as suas reflexões de um mau samaritano. Não compreendo por que é que diz que é um mau samaritano”, disse, argumentando: "Todo o político é um bom samaritano, por que senão não era político. Mesmo o pior político é um bom samaritano”.

O salão árabe do Palácio da Bolsa, onde decorreu a sessão, estava repleto e os intervenientes foram muito aplaudidos. Na sala havia muita gente conhecida, mas também muitos anónimos. Para além de Pedro Passos Coelho, que chegou com meia hora de atraso, marcaram presença o bispo do Porto, Rui Moreira, Braga da Cruz, Valente de Oliveira, Rui Rio, José Pedro Aguiar-Branco, Alberto Castro, Carvalho Guerra, Gomes Canotilho, Moura Ramos, Noronha do Nascimento, entre outras personalidades.

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