Que reforma do sistema político?

Sete personalidades de diferentes áreas apontam caminhos. Estão de acordo quanto ao exclusivo financiamento público dos partidos. Em nome da transparência, também defendem o reforço das incompatibilidades. Às candidaturas dos cidadãos é apontado o ónus de não assegurarem a governabilidade. Todos consideram necessária a aproximação dos eleitos aos eleitores.

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Cavaco Silva alertou, no 5 de Outubro, para o risco de implosão do sistema partidário, no mesmo dia em que o recém-formado partido Livre realizou o seu primeiro congresso e o eurodeputado Marinho e Pinto reuniu em Coimbra a assembleia de fundadores do futuro Partido Democrático Republicano. Num período em que o espectro partidário está em ebulição, com a desagregação do Bloco de Esquerda e a mudança de líder e de sistema electivo (com as primárias) no PS, o PÚBLICO quis ouvir personalidades da sociedade civil sobre os caminhos possíveis para uma reforma do sistema político.

“Há margem e justificação para alargar incompatibilidades”
Vital Moreira, professor universitário, constitucionalista

“Há margem e justificação para alargar as incompatibilidades”, afirma o constitucionalista e professor universitário Vital Moreira: “Não é admissível que os deputados que sejam advogados defendam interesses privados contra o Estado. Ser deputado deveria implicar a renúncia a essas situações.” Do mesmo modo, defende a extensão das incompatibilidades: “Alargar o período em que quem teve responsabilidades governativas não possa ser contratado por entidades que tenha tutelado.”

Rotunda é também a negativa aos círculos uninominais. “O facto de só haver um deputado por círculo retira representatividade parlamentar efectiva a uma parte da população, que pode ser a maioria”, adverte: “A aproximação entre eleitores e eleitos pode-se fazer em círculos plurinominais que elejam um número reduzido de deputados, associada com o voto preferencial, em que os eleitores podem seleccionar um candidato do partido em que votam.”

Este desenho seria completado num círculo nacional para assegurar a representatividade dos partidos mais pequenos. “A reforma não pode ser feita se se reduzir muito o número de deputados, o que seria feito à custa das representatividades territorial e social”, destaca.

Vital Moreira não concorda com as candidaturas de cidadãos. “Tal não é consentido pela Constituição mas sobretudo porque num sistema parlamentar de governo as eleições parlamentares também são eleições para o Governo”, anota: “Não faz sentido permitir a eleição individual de deputados que nas eleições seguintes já podem não ser candidatos e a quem ninguém pode exigir responsabilidades. Uma democracia parlamentar é uma democracia de responsabilidade partidária”.

Considerando que é quase tão fácil criar um partido como organizar uma candidatura de cidadãos, o constitucionalista alerta: “Os partidos devem ser obrigados a ser mais transparentes nas eleições internas, fiscalizadas por entidades independentes, na selecção dos candidatos e deveriam incluir uma quota de independentes nas listas.”

Transparência também tem de vigorar na fiscalização dos rendimentos dos políticos. “Devem disponibilizar a declaração de IRS, que agora pode ser feita em nome individual e não em conjunto com o cônjuge”, refere: “O Parlamento e o Governo deveriam ter códigos deontológicos para os seus membros, incluindo o dever de revelarem os seus movimentos em caso de legítima suspeita.”

Por fim, as subvenções do Estado aos partidos devem manter-se, mudando o órgão de controlo. “O financiamento público é a única garantia de um mínimo de igualdade de oportunidade na luta politica e de proibição de financiamento por empresas privadas, o cancro de outras democracias”, assegura: “O financiamento público também justifica melhor o controlo público das finanças partidárias, que deve passar do Tribunal Constitucional para o Tribunal de Contas”.

“As instituições do regime têm de ser pagas”
Helena Rodrigues. dirigente sindical

“As instituições do regime têm de ser pagas”. É desta forma que Helena Rodrigues, vice-presidente do sindicato dos Quadros Técnicos do Estado, encara o financiamento partidário: “Se não for através do Estado, os partidos podiam sofrer a cartelização por interesses privados.”

A introdução dos círculos uninominais  deve ser antecedida de informação: “Que sabem os portugueses dessa questão? Deve haver educação cívica que incentive a participação dos cidadãos.” A sindicalista admite que, nas candidaturas de cidadãos, “os candidatos estão mais em contacto com as pessoas e sofrem um escrutínio mais directo.” Após as últimas autárquicas não hesita uma reflexão: “Estas candidaturas desestabilizaram os partidos políticos e os interesses instalados.”

É desejado o reforço das incompatibilidades dos políticos e deputados: “A questão coloca-se quando alguém transita de ministro para uma área sobre a qual tomou decisões”. Há outros casos: “Ser deputado é aceder a um cargo com enormes responsabilidades que representa o interesse público, pelo que tem de ser muito bem remunerado.” O estatuto económico é fundamental: “Não se pode pedir a quem ganhe muito dinheiro na privada que vá para o sector público ganhar menos.”

Uma malha não apenas para os deputados que são advogados: “Também os engenheiros, mas nos advogados é conhecida a história da vírgula”. Relata um episódio: “O Código dos Contratos Públicos foi feito num escritório de advogados que é o mesmo que está a dar o apoio ao Estado na interpretação do mesmo Código.” Nesta senda, a transparência sobre os rendimentos não se deve limitar aos políticos. Helena Rodrigues aponta outro caminho: “Concordo com o regime sueco em que é conhecido o IRS de todos os cidadãos que é facultado publicamente pelas Finanças.”

Na descredibilização do sistema político, lança uma seta ao Governo: “Quando o Governo diz mal dos funcionários públicos, está a descredibilizar o sistema.”

“Rigor para evitar cargos públicos e actividade privada”
António Pedro de Vasconcelos, realizador de cinema

“Deve haver imenso rigor para evitar juntar cargos públicos com actividade privada, o que cria sempre um clima de suspeição”, considera António Pedro Vasconcelos. O cineasta é a favor do apertar das incompatibilidades, em especial dos deputados: “Queria condições para que os advogados se pudessem dedicar à causa pública. Há a tentação de diabolizar os políticos, mas a verdade é que eles se puseram a jeito.”

O realizador de “Os gatos não têm vertigens” não pretende seguir aquele caminho, embora afirme que foi fatal aos deputados a abertura do canal Parlamento: “Os deputados devem ter condições para se dedicar à política com garantias.” Para António Pedro, seria inócua uma maior fiscalização dos rendimentos dos políticos.

Na credibilização do sistema político, embora favorável aos círculos uninominais, não os considera “uma panaceia”. Não é adepto das candidaturas de cidadãos, argumentando com a estabilidade governativa: “À partida, o Governo deve ter condições de estabilidade, de ter alguma segurança de executar o seu programa.”

As polémicas sobre o financiamento dos partidos são acessórias para António Pedro Vasconcelos: “A seguir ao 25 de Abril houve várias tentativas populistas de criar partidos contra os partidos. O próprio General Eanes não resistiu a isso, e agora é o Marinho e Pinto.”

O realizador aponta dois problemas básicos para a credibilização do sistema político: “Com uma Justiça não justa, não célere, de pobres e ricos, e com uma imprensa que, pela concentração empresarial, não é livre, regressamos aos tempos da ditadura.” Crítico, afirma: “A nossa liberdade é escolher o nosso carrasco, o mal menor. Este colapso da democracia não se trava com a moralização da vida política.”

“Atrair para a política os competentes”
João Miranda, empresário

A via para credibilizar o sistema político é atrair para a política os competentes, diz João Miranda, presidente da Frulact, empresa de preparados de fruta para a indústria alimentar, com fábricas em Portugal, Marrocos, França e África do Sul: “O que é necessário é atrair para a política quadros competentes, apostando no mérito e obviamente pagando.”

O empresário não vê inconveniente “em que as pessoas tenham o seu trabalho e sejam deputados”. Não considera necessário apertar as incompatibilidades. No entanto, critica os choques entre o público e o privado. Exemplifica com a redacção das leis: “O peso que os escritórios de advogados têm na construção legislativa, através de consultadorias, em detrimento do papel dos juristas do Estado.”

Também não concorda com uma maior fiscalização dos rendimentos dos políticos. João Miranda recorre a um argumento pragmático: “Já há legislação, basta cumprir o que está legislado.” Sem a mínima concessão: “Entre os critérios para ser político ou deputado está a transparência sobre o património. Só é político ou deputado quem quer.” Igualmente claro é o financiamento dos partidos: “Devem ser integralmente financiados pelo Estado” , com plafonds e uma definição dos recursos que podem utilizar.

O gestor apoia os círculos uninominais e concorda com as candidaturas de cidadãos. “Apesar de entender a utilidade dos partidos e a sua forma estruturada de intervenção, devia haver pessoas sem conotação partidária”, diz. E sugere: “No universo dos deputados, talvez 5% devessem ser eleitos à margem dos partidos e assim conseguíssemos mais independência e isenção.”

“Se o Estado não os subvenciona, partidos entram no jogo financeiro”
Luis Vasconcellos e Sousa, agricultor

O financiamento dos partidos por subvenções do Estado tem o apoio de Luis Vasconcellos e Sousa, agricultor e presidente da Associação de Produtores de Milho: “Cada vez mais sou a favor das subvenções estatais, se não for assim há desculpa para os partidos entrarem em jogos financeiros”.

Quanto às incompatibilidades, responde com uma máxima: “Quem é sério sabe o que é ou não incompatível”. Para Vasconcellos e Sousa, esta posição radica num axioma. “Para a política devem ir os melhores, quem é o melhor tem a noção de espírito de missão”, afirma: “As pessoas que são sérias, bem formadas, sabem o que é ou não incompatível.”

No entanto, concorda com uma maior fiscalização dos rendimentos dos políticos: “Devem ter a noção de que a lei é para ser cumprida e que não há estatutos diferentes. Neste país a aplicação da lei é meramente indicativa.”

Defende os círculos uninominais e pugna por uma responsabilização directa dos deputados pelos eleitores. Concorda com as candidaturas de cidadãos em contraste com as listas partidárias. “Se os deputados não forem controlados pelos seus eleitores, o seu mandato acaba por diluir-se no grupo parlamentar, no partido e nos interesses partidários”, argumenta. Contudo, não vê caminho fácil às candidaturas dos cidadãos: “A cidadania tem dificuldade em organizar-se, a sociedade civil em Portugal é imberbe.”

Mas considera inevitável a mudança do sistema político: “A questão financeira pôs em evidência que não podemos ser diferentes dos outros países, depois de perdermos a independência nacional fomos obrigados a uma gestão mais parecida com a que os outros fazem, também assim será na política.”

“Prefiro votar numa pessoa do que num partido”
Alexandre Quintanilha, professor universitário e investigador

“Prefiro votar numa pessoa do que num partido, votar numa pessoa permite mais pluralidade e independência, evita a rigidez partidária em temas fracturantes”, afirma Alexandre Quintanilha. O professor, investigador e membro do Conselho de Ética para a Investigação Clínica é adepto das candidaturas de cidadãos.

“Devia existir a liberdade de voto total dos deputados nos partidos e, se a governação passa a ser então mais difícil, esse é o preço a pagar pela democracia”, insiste. No entanto, não ignora os perigos da ingovernabilidade: “Para permitir a governabilidade devia existir um número de princípios importantes, muito poucos, que seriam de obediência.”

Quanto aos círculos uninominais, é cauto: “Não são uma opção realista porque limita a representação, acaba por não representar fielmente a opinião plural dos eleitores.” Uma malha mais estreita de incompatibilidades seria bem-vinda: “É muito grave que os que nos representam tenham compromissos velados, ou porque pertencem a outras organizações ou porque têm interesses económicos”. A gravidade da falha implicaria sanção: “Os conflitos de interesses devem levar à expulsão, porque a opinião de quem nos representa estaria condicionada pelos interesses.”

E não há excepções profissionais. “Não se limitaria aos advogados, pode haver deputados médicos com interesses em clínicas privadas, até se aplicaria a professores universitários”, diz: “Defendo a exclusividade total, sou bastante puritano nesta questão, para haver a máxima transparência.”

Máxima transparência é o que o leva a concordar com um aumento da fiscalização dos rendimentos dos políticos. Draconiana é, por fim, a opinião sobre o financiamento dos partidos que deve caber ao Estado. “Há muito pouca gente que paga dinheiro por uma ideologia filosófica ou por amor à camisola”, ironiza: “Os partidos teriam de pagar em espécie o que receberam em dinheiro”.

“A nossa democracia já não é representativa”
António Arnaut, advogado

“Tenho simpatia pelos círculos uninominais, pois não temos mecanismos que assegurem a representatividade dos eleitores”, afirma António Arnaut. O pai do Serviço Nacional de Saúde, vai mais longe: “A nossa democracia já não é representativa, porque muitos dos deputados não respondem perante os eleitores mas aos interesses pessoais e dos partidos.” Assim, o círculo uninominal permite aos eleitores pedir contas ao seu representante: “Tem que ser completado por um círculo nacional que assegure a representação de todas as ideias políticas relevantes.”

Menor apego tem Arnaut às candidaturas de cidadãos a deputados: “Correm o risco de não se inserirem em nenhuma corrente ideológica, donde o controlo dos eleitores é ainda menor. Podem gerar instabilidade política, ao não assegurarem a governabilidade, e nalguns casos podem representar vaidades.”

O reforço das incompatibilidades é saudado, mas António Arnaut não quer como norma a exclusividade da política: “Sempre defendi a incompatibilidade da advocacia com o mandato de deputado, um advogado que é mandatário de um grupo económico não está em condições de tomar uma posição livre.” Mas a exclusividade pode ser uma armadilha: “Torna os deputados e os políticos dependentes do aparelho partidário.”

A transparência tem de ser a norma na fiscalização dos rendimentos da classe política. “Ninguém deve ter reservas em mostrar os seus rendimentos, mas essa declaração só deve ser acessível a quem mostre um interesse legítimo”, diz. O mesmo princípio de transparência é defendido no financiamento dos partidos: “O Estado deve financiar com verbas inferiores às actuais, caso contrário os partidos ficam sob a dependência de grupos económicos.”

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