Quando o futebol é o contrário da democracia

Não é compreensível nem aceitável que os clubes de futebol ignorem e se sobreponham a todos os interesses da sociedade.

Não sei se a realização de três jogos de futebol no dia das próximas eleições legislativas, decidida pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (por imposição dos próprios clubes, segundo as notícias), vai ter alguma influência sobre a abstenção.

É possível que os milhares de pessoas que se deslocarão para assistir aos jogos cumpram antecipadamente o seu dever cívico de votar e que só depois se entreguem à sua paixão do futebol. Como é possível que todos esses milhares de adeptos façam parte daquela significativa percentagem de cidadãos que, de qualquer forma, não iriam votar, porque preferem não participar nas escolhas colectivas mais importantes da sociedade e, por ignorância, preguiça, pelo seu espírito submisso ou por uma combinação de tudo isso, gostam de deixar nas mãos de outros as decisões políticas que vão afectar as suas vidas. É possível, por isso, que a realização dos jogos não tenha a mínima influência no resultado das eleições. Mas também é possível que tenha. E, simplesmente por isso, por essa pequena coisa chamada espírito cívico ou cidadania, por essa pequena coisa chamada respeito pela democracia, que a Liga aparentemente ignora, seria importante encontrar outra data para os jogos, como aliás sempre se fez em eleições anteriores.

Não se pode dizer que a posição dos clubes seja surpreendente. Os clubes de futebol habituaram-se nas últimas décadas, em Portugal e em muitos outros países, a ocupar uma posição acima da moral e da lei, sancionada pelo furor das paixões das multidões que o jogo move. Se existe sectarismo nos partidos, o sectarismo é o coração e a razão de ser do futebol, um sectarismo que atravessa classes e ideologias, profissões e regiões. Daí que os clubes de futebol se tenham habituado a um estatuto de excepção, a uma constante protecção por parte dos poderosos de todos os outros poderes e, nomeadamente, a um tratamento de favor por parte do estado, que espalha pelos clubes benefícios que retira dos nossos bolsos sem que se levante um clamor indignado na sociedade, como seria normal. Fala-se com frequência do poder secreto que a Maçonaria ou a Opus Dei possuem na nossa sociedade, de como a Goldman Sachs ou o grupo Bilderberg condicionam as nossas escolhas democráticas, mas as mais poderosas forças que capturaram a sociedade e o estado em Portugal são as redes de interesses dos partidos do “arco do governação” e as redes de cumplicidade criadas em torno do futebol.

A atracção do futebol é compreensível, o que não é compreensível nem aceitável é que os clubes de futebol se tenham habituado a ignorar e a sobrepor-se a todos os interesses que não sejam os seus.

Os grandes cúmplices da arrogância dos clubes de futebol são, naturalmente, os media, que concedem a este desporto/negócio um estatuto de verdadeiro desígnio nacional e o equiparam (quando não o sobrepõem), em todos os espaços noticiosos ou de comentário, às questões mais fundamentais da nossa sociedade.

Não existem palavras para descrever a vergonha que deveria ser para uma redacção de jornalistas abrir um telejornal com um fait-divers de futebol, mas isso acontece com uma frequência assustadora nas nossas televisões. Um clube muda de treinador? Os primeiros vinte minutos de todos os telejornais são dedicados à “notícia”, acrescentados de horas de debates com a participação de especialistas, alguns deles figuras conhecidas do mundo político.

Um jornal ou um telejornal deveriam ser espaços onde se descreve, se explica e se comenta o mundo. O mundo em que vivemos, os acontecimentos mais importantes do mundo em que vivemos, as escolhas fundamentais que temos de fazer, as alternativas que se nos colocam. Encher um telejornal de futebol, arrancar um telejornal com futebol, dedicar horas de “noticiário” ao futebol dá aos cidadãos a mensagem de que o futebol é, de facto, uma das coisas mais importantes que existem no mundo, talvez a coisa mais importante que se passa em Portugal, uma coisa sobre a qual é fundamental estarmos informados, certamente mais importante que a União Europeia ou a guerra na Síria. Haverá alguma outra forma mais eficaz de manipulação das mentes? Haverá forma mais perniciosa de minar a democracia?

É evidente que o futebol, como importante negócio e como desporto de massas, deve ter espaço nas televisões. É natural que haja transmissões de jogos, directos, debates e entrevistas. O que não é justificável é que isso aconteça num espaço noticioso onde, presumivelmente, e segundo o contrato social que une o jornalismo à sociedade, nos são mostrados e analisados os acontecimentos mais importantes do mundo, aqueles que vão determinar o nosso futuro e sobre os quais devemos desenvolver uma opinião. Da mesma forma que não seria justificável incluir uma secção de astrologia no telejornal para nos anunciar os acontecimentos da próxima semana. A informação deve alargar as escolhas dos cidadãos e permitir escolhas informadas e não ser uma lavagem ao cérebro.

Cabe aos media colocar o futebol no seu lugar - um jogo, um hobby, um negócio, uma rede de interesses que deve ser fiscalizada e não um projecto nacional nem uma actividade estratégica - e ajudar a devolver à cidadania o que é da cidadania.

Candidato independente às eleições legislativas pela coligação cidadã Livre/Tempo  de Avançar (jvmalheiros@gmail.com)

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