Quando a ciência promete melhorar a economia e o mercado falha

Eles são jovens, doutorados, e descobriram na biotecnologia um negócio que pode valer milhões. Mas os bancos não acreditam e não financiam. Assunção Cristas admite que neste caso o mercado, por si só, não chega.

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A economia do mar tem sido um dos temas que têm marcado a agenda do Presidente da República Daniel Rocha

Tore Nepstad, um antigo oficial da marinha norueguesa, que agora dirige o Instituto de Investigação Marinha, está a mostrar um exemplar júnior de Gadus morhua a Cavaco Silva. Tira-o do tanque com uma rede e apresenta-o pelo nome comum: bacalhau. Ao lado, num aquário, nadam milhares de “larvas” de bacalhau, minúsculos seres de 1 milímetro de comprimento, nascidos há 14 dias.

A estação de Austevoll, onde o ferry que transporta o Presidente português atracou, é um razoavelmente pequeno conjunto de casas de madeira, como uma normal aldeia piscatória nórdica. Só que na maioria das casas vivem peixes. Alguns são preservados como se estivessem numa incubadora neo-natal. E o mar em volta do ancoradouro está dividido em tanques. Cada um representa uma determinada fase no desenvolvimento dos animais. “A aquacultura na Noruega desenvolveu-se graças ao investimento na ciência aplicada nesta estação”, explica Nepstad. Telmo Carvalho, o português que há 11 anos trabalha com as ciências do mar, primeiro como director-executivo do programa europeu Euroceans, agora como responsável pelo novo Gabinete Oceano, da Fundação para a Ciência e Tecnologia, FCT, explica a utilidade prática destes investimento: “Não há economia do mar sem ciência. Têm de ser os cientistas a dizer o que é viável e como se protege o sector”.

E há uma admirável ligação entre ciência e economia neste sector. Quase todos os empresários que estão no ferry, e desembarcaram em Austevoll com Cavaco Silva, são cientistas. João Navalho tem um mestrado em aquacultura e fundou a Necton, que produz microalgas (e de caminho “inventou” a flor de sal). Pedro Lima licenciou-se em Biologia Marinha e tem um doutoramento em neurofisiologia, criou a Sea4Us que está a patentear um medicamento para combater a dor crónica, a partir de um invertebrado marinho. Helena Abreu tem um doutoramento em algas, criou a Alga+ que exporta algas criadas em aquacultura para várias indústrias, da alimentar à cosmética.

Estes são alguns exemplos da “economia azul” que Cavaco Silva quis levar à Noruega, integrados numa comitiva diferente, tanto em termos geracionais, como culturais. Se falarmos com os responsáveis políticos e científicos aqui presentes ouvimos, invariavelmente, que a biotecnologia marinha é o “petróleo” que Portugal pode explorar. O Presidente da República repetiu-o, por outras palavras. Mas a diferença entre a realidade portuguesa e a norueguesa não podia ser mais gritante. Na Noruega há bancos e fundos de capital de risco, disponíveis para investir nesta área. E um Estado que tem a ciência "como principal prioridade". Em Portugal, João Navalho e os seus sócios tiveram de “ir ao banco e dar como garantia as hipotecas” das suas casas. Pedro Lima tenta o crowdfunding. O sector financeiro, que era suposto perceber a rentabilidade destes investimentos, mostra-se conservador. 

Assunção Cristas, ministra que tem a seu cargo o sector do mar, viaja no mesmo barco. Será caso para dizer que o mercado, por si só, não funciona? “Sim. O mercado precisa de ser criado”, reconhece a ministra, quando o PÚBLICO a confronta com estas queixas dos empresários. Cristas lembra que existem apoios a fundo perdido, co-financiados pelo Estado e pela União Europeia, como o Mar 2020 ou o Horizonte 2020, e que esses são já “auxílios generosos”. Outra hipótese, prossegue Cristas, é ser “a instituição financeira pública”, o recém-criado Banco de Fomento, a suprir as lacunas da banca, uma vez que esta é uma área “com imenso potencial”.

Como saltamos de ilha para ferry, e vice-versa, é fácil à ministra apontar um exemplo. Helena Abreu, bióloga, por exemplo, lançou a sua empresa com 600 mil euros e auxílio do programa Promar, explica. 

Pedro Lima tem outro problema. Descobriu, num invertebrado marinho (a espécie ainda é segredo comercial, até a patente estar garantida), um “modulador” que agindo no “gânglio da raiz dorsal” pode ser o primeiro medicamento conhecido para o tratamento da dor crónica. O gânglio era há muito o “alvo terapêutico” identificado pela comunidade científica no tratamento da dor em doentes com “fibromialgia, cancro, neuropatia diabética, perda de membros, dores lombares artroses”. A Sea4us, que Lima criou com três outros sócios, em Sagres, descobriu uma forma de desligar esse “interruptor” da dor. Uma em cada cinco pessoas no Mundo sofre de dor crónica. Mas nenhum banco português acredita num “negócio” que só começa a ter receitas 12 anos depois de iniciado e, como explica Pedro Lima, até essa altura, “não há dinheiro a entrar, só a sair”. Para fazer testes clínicos, a empresa precisa de dois milhões de euros, mas até chegar às farmácias são precisos dois mil milhões. “É irrealista”, conclui Lima, que conta levar o patente o mais longe possível, mas depois terá de a vender à indústria farmacêutica. Os fundos comunitários não são uma solução evidente: “Temos de ter tesouraria e capital de co-financiamento”, explica Pedro Lima.

Se Pedro Lima descobriu um “medicamento” de ponta num “organismo marinho sem valor comercial”, e com isso é mais um “spin off” - no caso do laboratório de neurociências da Faculdade de Ciências Médicas da UNL - João Navalho deu um nome a uma coisa e com isso criou-lhe valor.

João conta a história na ilha Austevoll, enquanto olha para os viveiros de bacalhau e alabote. Ele e os seus colegas, biólogos marinhos, compraram umas salinas abandonadas na Ria Formosa, no Algrave, onde, em 1997, instalaram a Necton, “a empresa mais antiga da Europa a produzir algas para aquacultura”. Mas nas salinas ainda havia um “marnoto”, ou salineiro, que aproveitava o sal, chamado Maximino. Umas das suas queixas principais era o trabalho que dava partir o “coalho”, a película de cristais de sal, parecida com a nata do leite, que ficava à superfície. O dito “coalho” era pouco conhecido. Até que na Necton se passou a chamar “flor de sal”. “Vais deixar de partir o coalho, vais recolhê-lo”, pediu João a Maximino. “Levantámos uma pedra e estava lá uma nota…”, reconhece. Agora, “o negócio do sal financia o negócio das algas”. O “coalho” chega para financiar a investigação de organismos tão complexos como as algas “thalassosira”, ou os “esqueletos” de microalgas que servem de biomateriais para a produção dos mais pequenos micro-chips do mercado. Para João Navalho, isto é apenas “agricultura com tecnologia na água”. Mas não quer ficar por aqui, com 40 funcionários e dois milhões de facturação. Quer crescer até ter um “departamento de investigação próprio”. 

A mesma diferença se regista na aquacultura. Portugal não tem peixe suficiente para as necessidades de consumo. Cavaco Silva reconheceu-o, na sua última intervenção, na ilha de Bekkjarvik, antes de regressar a Lisboa: “Portugal é per capita um dos maiores consumidores de peixe no mundo, mas no entanto nós temos de importar mais de metade do peixe que consumimos. Por isso nós temos de apostar outra vez no desenvolvimento da aquacultura.” Apenas uma exploração, como aquela que a comitiva viu, nos fiordes de Bergen, produz 6 mil toneladas por ano de salmão. Portugal inteiro, com os seus 1300 produtores, pouco ultrapassa esse valor: 10 mil toneladas. Fernando Gonçalves, secretário-geral da Associação Portuguesa de Aquacultura, acredita que “há potencial para produzir 100 mil toneladas por ano”, sobretudo de bivalves, robalos e douradas. Mesmo assim, multiplicando por dez a produção actual, Portugal ficaria com um décimo da produção norueguesa. 

O acordo científico que demorou meses a negociar
A assinatura demorou poucos minutos. Maria Arménia Carrondo, a nova presidente da FCT, e o seu homólogo norueguês assinaram duas minutas, encadernadas e transportadas pelos responsáveis do protocolo de Estado dos dois países. Mas o texto deu muito trabalho. Desde logo, porque a Noruega não tem por hábito assinar acordos bilaterias com países europeus, uma vez que já participa nas redes de cooperação da UE. Fê-lo, agora, porque há uma grande complementaridade entre as “ciências do mar” dos dois países. E também porque, dessa forma, pode articular com Portugal uma posição comum nas decisões sobre investimento científico a nível europeu. Será, sobretudo, visível no intercâmbio de cientistas e na partilha de infraestruturas e vais ser acompanhado em Portugal por Paula Elyseu Mesquita, Directora de Relações Internacionais da FCT, e Telmo Carvalho, do Gabinete Oceano.

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