Pulseira electrónica até 2035

Pulseira electrónica contra o desgoverno e o despesismo? Olhem para mim a oferecer a canela.

A frase de cima não é minha, mas sim do sempre colorido Jerónimo de Sousa, que, ao comentar o novo e já famoso prefácio de Cavaco Silva, declarou: “O Presidente da República, julgando-se outra vez no papel do homem do leme, veio anunciar que até pelo menos 2035 – ou seja, durante os próximos 20 anos –, os portugueses vão ter de se sujeitar a andar com a pulseira electrónica, tendo como vigilantes os mercados e a troika estrangeira.”

Jerónimo de Sousa é um homem simpático e afável, que todos nós gostaríamos de ter como tio, mas há qualquer coisa de desconcertante em juntar na mesma frase o Partido Comunista Português e um qualquer ano no futuro, na medida em que uma das mais notáveis qualidades do PCP é a sua existência fora do tempo. 2035, 2014, 1917, 1848 – para os comunistas é indiferente a época em que estamos, porque desde Marx e Engels que a História ficou definitivamente explicada, e para todo o sempre.

O PCP não tem de se preocupar com o que vai acontecer ao país até 2035, na medida em que vai ser o mesmo que aconteceu pelo menos desde 1975: as políticas de direita a assaltar os trabalhadores em benefício do grande capital. O PCP é como os filmes da Disney, não precisamos sequer de ir ao cinema para saber qual é o final. Desde que vivemos em democracia, tivemos três Governos socialistas: Mário Soares, António Guterres e José Sócrates. Dispenso-me de recordar o grande amor de Cunhal por Soares. Já sobre o Governo Guterres, dizia Carlos Carvalhas que ele era “cúmplice da política de direita”. E sobre o Governo Sócrates, dizia Jerónimo que “cúmplice da política de direita” ele era. Para Jerónimo “Dupond” de Sousa, até José Sócrates e Manuela Ferreira Leite eram “farinha do mesmo saco”.

Assim sendo, se a farinha nunca muda, qual é o problema da esquerda com o facto de o país ficar com “pulseira electrónica até 2035”, como alertou – e muito bem – o Presidente da República? É da pulseira electrónica ser estrangeira, em vez de made in Portugal? O PCP prefere a incompetência das políticas de direita nacionais em vez da incompetência das políticas de direita internacionais? Será uma coisa nacionalista, para não prejudicar a balança comercial da incompetência? É que, não sendo expectável que o PCP algum dia chegue ao Governo (ele não quer coligar-se), o passado, o presente e o futuro unem-se e confundem-se, tanto no olhar de Deus como da Soeiro Pereira Gomes.

Se eu fosse líder de um partido que andasse a queixar-se há 40 anos das políticas de direita nacionais, se calhar agora até dava uma oportunidade às políticas de direita internacionais. Só para variar um bocadinho. Mas isso sou eu, claro. Eu, e outros como eu – gente que depois de ver o que aconteceu ao país com a entrada no euro e a bebedeira de crédito fácil que se lhe seguiu, aprecia muito que alguém ou alguma coisa coloque um travão numa forma de governar que anda há décadas a gastar o dinheiro que o país não tem.

É certo que eu preferia que de tempos a tempos não houvesse um grupo de técnicos internacionais a aterrar na Portela para nos ensinar o que fazer. Mas, como se vê pelas posições de António José Seguro, do duo bloquista, do secretário-geral do PCP ou até mesmo de muitos sociais-democratas, a nossa cultura política está bastante longe de se ter modificado nos últimos três anos. Cavaco Silva está cheio de razão. Pulseira electrónica contra o desgoverno e o despesismo? Olhem para mim a oferecer a canela.

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