Protecção de Dados acusa Governo de dar às secretas “carta branca para vasculhar"

Embora não seja vinculativo, o documento pode levar a alterações à proposta no debate em especialidade.

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O director-geral do SIRP, Júlio Pereira Nelson Garrido

A Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) acusa o Governo de pretender dar “carta branca” às secretas para "vasculhar todos os indivíduos". Num parecer muito crítico com a proposta de lei do executivo sobre o regime do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), a CNPD não poupa os principais aspectos da iniciativa governamental.

“O legislador (quis) dar 'carta-branca' aos serviços do SIRP para vasculhar os dados pessoais sensíveis de todos os indivíduos que se encontrem no território nacional, sem dependência de qualquer controlo prévio”. Esta é a síntese do parecer emitido na passada sexta-feira pela CNPD e publicitado esta segunda-feira. Em causa estão várias disposições da proposta de lei sobre registos de chamadas telefónicas, dados bancários e fiscais de pessoas consideradas suspeitas de terrorismo. Um sistema que, contudo, vigora na maioria de Estados da União Europeia.

O documento de 23 páginas aborda diversos pontos, da legalidade da recolha, acesso e armazenamento daqueles dados à desproporcionalidade que tal prática implicaria. A CNPD questiona inclusive a faculdade do SIRP, órgão de cúpula das secretas, de se dedicar à prevenção da criminalidade altamente organizada de natureza transnacional, uma novidade na definição das funções do SIRP agora proposta. Assim, manifesta mesmo dúvidas da compatibilização das novas funções do SIRP com a PJ.

O miolo essencial reside nos chamados dados de tráfego e de localização. “Estes, pela sua natureza, são dados que revelam a todo o momento aspectos da vida privada e familiar dos indivíduos, onde estamos ou estivemos”, destaca o parecer assinado pelo relator Carlos de Campos Lobo. Em causa não está o conteúdo das comunicações, ou seja, não se trata de escutas, mas da captação de dados que permitem aferir a localização, destinatário e duração da chamada.  O que, de acordo com o documento, viola o preceito constitucional relativo à inviolabilidade do domicílio e de correspondência.

Do mesmo modo, a CNPD põe em causa o sistema de autorização para a recolha destes metadados. Segundo a proposta de lei, a autorização compete a uma comissão de controlo prévio, integrada por três juízes. “Não se afigura que um órgão administrativo, como é a comissão de controlo prévio, independentemente da natureza estatutária dos seus membros, se possa equiparar a um órgão judicial”, salienta o parecer. Assim, é recusado qualquer paralelo entre a comissão de controlo prévio e um órgão judicial.

Igualmente é criticado o acesso a dados bancários e fiscais contemplado na proposta do executivo. “Não se afigura evidente que um terrorista ou membro de uma associação criminosa transnacional deixe rastro das transacções comerciais que realiza nas bases de dados bancários ou fiscais, ou declare os seus rendimentos e as respectivas fontes à Autoridade Tributária”, comenta.

Neste âmbito, o parecer questiona, ainda, o poder-dever do secretário-geral do SIRP para determinar a destruição dos dados pessoais que não tenham relação com o objecto ou finalidades da autorização. No proposto, a vigência da recolha de dados é de três meses sucessivamente renováveis, sem limite. “Parece violar o princípio da proporcionalidade”, admite o texto que, recorda, o acesso a base de dados das operadoras foi declarado inválido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

Deste modo, a CNPD refere que a proposta de lei configura uma agressão aos direitos à privacidade, à protecção de dados e à liberdade. “Não se pode senão falar de uma devassa, no sentido jurídico do termo, aparentemente legitimada pela lei mas que viola os pilares do Estado de Direito e de uma sociedade democrática”, conclui.

Registo de interesses proibidos na internet
Quanto ao registo de interesses para o exercício de funções no SIRP – do indigitado para o cargo de secretário-geral, de todos os membros do seu gabinete, dirigentes e demais pessoal -, o parecer admite reserva de comunicação pessoal relativa a terceiros próximos do titular e alerta para a divulgação de aspectos da vida privada, pelo que classifica tal informação como reservada. O mesmo se aplica, ainda, aos candidatos ao Conselho de Fiscalização do SIRP.

Alegando razões de segurança de Estado, de protecção da vida e integridade física dos elementos das secretas, o parecer propõe uma disposição que proíba a divulgação destes dados na internet.

Na quarta-feira, tendo em conta estes e outros pareceres não vinculativos, decorre o debate no Parlamento da proposta do Governo que vai a votação na próxima sexta-feira. A maioria PSD/CDS-PP e o principal partido da oposição anunciaram voto a favor.

Contudo, o PS considera a existência de questões a corrigir na especialidade. Os deputados analisam também o projecto-lei do PCP em sentido oposto à proposta do executivo.   

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