Propaganda governamental

Num curto intervalo de 15 dias, o Governo da nação apresentou quatro documentos distintos acerca daquilo que tem feito nesta legislatura e aquilo que se propõe fazer no futuro. A 30 de Abril saiu o Documento de Estratégia Orçamental 2014-2018; a 8 de Maio lançou o livro A Gestão do Programa de Ajustamento; ainda a 8 de Maio Paulo Portas mostrou o guião final de Um Estado Melhor (irmão gémeo daquele que já fora apresentado a 31 de Outubro); e finalmente, no último sábado, 17 de Maio, tivemos direito a conhecer Caminho para o Crescimento, mais a sua versão em inglês, Road to Growth.

Como eu levo o meu trabalho a sério, decidi com grande pesar interromper a leitura das obras completas de Dostoiévski para me dedicar aos vários volumes de Carlos Moedas et al., cumprindo assim a minha obrigação de colunista: comparar os quatro documentos, avaliar da pertinência de cada um e expor o resultado dessa análise a partir dos objectivos definidos nas introduções de cada título. É um exercício muitíssimo útil.

Começando pelo documento mais recente, Caminho para o Crescimento, é seu objectivo assumido “apresentar o programa de reformas actualmente em curso em prol do crescimento sustentável, assim como os seus compromissos, tendo em vista a solidez das finanças públicas”. Já o objectivo de Um Estado Melhor, Maio 2014 – que se distingue de Um Estado Melhor, Outubro 2013 por mudar a fonte de Arial Narrow 16 para Calibri 14 e ao anexar um quadro com 118 medidas que, afinal, são 117, porque da 61.ª salta para a 63.ª – é “apresentar um guião para a reforma do Estado”, já que “reformar o Estado é criar condições institucionais para um padrão de finanças públicas saudáveis”. Quem não perceber a diferença entre um “programa de reformas” e um “guião para a reforma” só pode ser uma pessoa mal-intencionada, que não gosta nem de Paulo Portas, nem de Carlos Moedas.

Felizmente, para tornar mais clara essa diferença, existe o balanço realizado em A Gestão do Programa de Ajustamento, em que se dá conta do que foi feito até agora para “consolidar as finanças públicas e assegurar a sustentabilidade da dívida”. Matéria que, por sua vez, é totalmente distinta daquela que é abordada no Documento de Estratégia Orçamental, que representa o “compromisso do Governo com a sustentabilidade das finanças públicas”. Não se perca, caro leitor, que o Diabo esconde-se nos detalhes: o primeiro documento quer a “solidez das finanças públicas”; o segundo deseja “finanças públicas saudáveis”; o terceiro mostra o que já se fez para “consolidar as finanças públicas”; enquanto o quarto compromete-se a fundo com a “sustentabilidade das finanças públicas”. Percebeu?

Se ainda não tiver percebido, estou certo de que o Governo colocará brevemente à sua disposição um quinto documento, no qual, com sorte, utilizará ainda mais vezes a palavra “reforma”, que afinal só está escrita 107 vezes em A Gestão do Programa de Ajustamento, 157 vezes em Um Estado Melhor, 96 vezes no Documento de Estratégia Orçamental e 103 vezes em Caminho para o Crescimento, o que totaliza 463 “reformas”. Isto no papel, claro – na realidade, foram para aí três ou quatro. A esta forma de trabalhar dá-se o nome de propaganda, que na dose certa até se aceita como parte da democracia. Mas propaganda a quadruplicar, no período de 15 dias e com resmas de propostas que chegam com três anos de atraso custa um bocadinho a engolir. Até porque somos nós a pagar o papel e os pdf.

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