Propaganda e informação

Compete aos jornalistas não deixar que aqueles que os convidam distorçam o sentido dos briefings com “recados sem dono certo”.

Alguns leitores escreveram-me a propósito  da minha penúltima crónica sob o título "Fontes jornalísticas, especulações e manipulação". Um leitor de forma mais pertinente considerava que não obstante a oportunidade eu fora algo brando. Outro pedia-me que não deixasse o assunto cair, pois é preciso não haver contemplações quando a transparência e a lisura das regras do funcionamento entre Poder e Media são beliscadas ou não respeitadas. As considerações então por mim feitas tinham por pano de fundo a caricata convocatória de um grupo de jornalistas pelo Ministério das Finanças para a realização de uma conversa sobre o estudo que estava a ser efectuado com vista à aplicação por parte do Governo de uma nova fórmula no cálculo das pensões. O que caracteriza de caricato esta convocatória não era o conteúdo da conversa, era o condicionamento da não personalização do autor – fonte da notícia, quando muito atribuível aos bastidores de caves ocultas de uma fonte desse ministério, lugar da importante revelação para a opinião pública. E tudo isto em nome do “sagrado” princípio da reserva sobre as fontes em prol da defesa da liberdade de informar.

Pelo desfile que se seguiu de declarações e contra-declarações em desmentidos e clarificações sobre o sucedido, não me parece embarcar em qualquer conspiração maquiavélica reconhecer que os jornalistas foram “vítimas” de uma mal arquitectada rasteira, porventura, por interposta, mas depois inocentada, personagem da velha máxima latina “Roma locuta, causa finita”. Desde sempre o poder oculto de Roma ou de qualquer outro centro de poder que se preze, os “servos do poder” também têm direito a gozar do seu sigilo, ainda mesmo que isso os coloque em perda de respeitabilidade.

Tinha perfeita noção de que não esgotara o assunto na minha crónica e confesso que só não o retomei na crónica seguinte por ver a questão muito bem e lucidamente tratada num artigo do jornalista José Vítor Malheiros, publicado no PÚBLICO (1.04.2014) sob o título "Os jornalistas não podem ser cúmplices de encobrimento".

Porém, o período que estamos a viver de pré-campanha para as eleições dos deputados europeus (mas já muito e principalmente embrulhadas na perspectiva próxima das legislativas e até das do Presidente da República) coloca na agenda de um provedor dos Leitores do PÚBLICO trazer a terreiro algumas considerações a propósito das cautelas que os jornalistas deste jornal,, pelo estatuto a que estão comprometidos, enquanto autores do PÚBLICO, numa “relação rigorosa e transparente, autónoma do poder político e independente de poderes particulares” tenham de cumprir. E isto, sobretudo, na defesa de uma desejável idoneidade política num país e numa Europa em profundo défice democrático.

De facto, os jornalistas do PÚBLICO terão de ser os primeiros a pugnar pela sua própria credibilidade e pela do seu jornal. Citava eu, há dias, uma frase do comunicólogo Lucien Sfez, em que ele afirmava “a propaganda é o aspecto patológico da comunicação política”. Como é evidente, os agentes políticos e, em especial, aqueles que actuam na lógica estratégica dos seus partidos e dos seus ideais ideológicos terão de assumir a posição, intransigente e tantas vezes ilógica, dos princípios que incorporam e das práticas que prosseguem. Compete-lhes serem os agentes activos dos seus partidos. Eu ia a dizer das suas convicções. Mas, sinceramente, o que me parece justificar o nível baixo e rezingão, a que está remetido o discurso dos agentes partidários no espaço político português, é que não me dá direito a aludir às convicções. Na verdade, como dizem muitos estudos sobre a comunicação política, o estado de campanha de um actor de política partidária é permanente. O exacto período de campanha é apenas um momento de intensa actividade. Ora, os jornalistas terão de saber discernir de forma clara este estigma de que padece o corrente discurso partidário. Provavelmente, a democracia não perdurará sem partidos políticos, mas estamos numa fase em que se torna urgente e profiláctico reinventar a forma e o estilo do discurso político-partidário. E os jornalistas não podem consentir que a troco de informação política seja inoculada propaganda. Aliás, ( esta é uma opinião que espero não ofender os cânones da prática política em democracia) a  propaganda deveria ser paga como a publicidade. E num tempo em que os media são obrigados a recorrer a formas de publicidade acusadas de pouco claras, por causa da sua própria subsistência, não seria despiciendo que os partidos que tanto gastam nas suas campanhas fizessem propaganda paga nos media. Era uma clarificação dos processos e ajudava aos suportes da vida democrática.

Obviamente que não cabe aos jornalistas interferirem na produção do discurso dos agentes políticos ou partidários, mas compete aos jornalistas concorrerem para expurgar a confusão entre informação e propaganda nos procedimentos jornalísticos que lhes dizem respeito. Por exemplo, compete-lhes não deixar que aqueles que os convidam distorçam o sentido dos briefings com “recados sem dono certo” ou das conferências de imprensa sem direito a perguntas. Quando assim for imposto por quem os convoca, deveriam ausentar-se, pedindo para substituir as “falsas” conferências de imprensa por simples comunicados ou notas para a imprensa.

Não tenho dúvidas de que o sucedido no Ministério das Finanças com o secretário de Estado da Administração Pública, José Leite Martins, terá sido objecto de debate interno por parte da direcção e dos jornalistas do PÚBLICO. Os factos obrigam a considerá-los nas suas circunstâncias.

 

CORREIO LEITORES/PROVEDOR

Escreve um Leitor: “Não acho normal que uma série tenha destaque de 1.ª página no PÚBLICO de domingo. Não creio que esta série, ou qualquer outra série ou novela, possa ou deva merecer este destaque. Afinal, parece que tudo se vende. Fica mal ao PÚBLICO, a convite de um canal emissor a troco desta publicidade dissimulada.”

Resposta do provedor: O Leitor referia-se à reportagem sobre a série televisiva A Guerra dos Tronos, inserida na secção CULTURA do PÚBLICO, com chamada a 1.ªpágina, na edição de 6.04.2014.

Compreendo a reacção do Leitor, que se deve, com certeza, à opinião que tem sobre o PÚBLICO, como seu “jornal de referência”. Contudo, creio que há, aqui, duas questões. Uma é a questão do destaque em 1.ª página. Outra é a questão de a reportagem ter o “patrocínio” do canal SyFy, como se infere da nota final da reportagem referida pelo jornal: “O PÚBLICO viajou a convite do SyFy.”

Quanto à primeira questão, devo dizer que não estou de acordo. Efectivamente, estamos perante uma obra de produção televisiva de reconhecida qualidade pela própria crítica internacional, “uma série de culto”, como se diz, e que merece relevo na sua categoria de objecto/obra de cultura.

Relativamente à segunda questão. Efectivamente, o assunto é mais complicado e eu estaria inclinado a dizer ou a fazer ver que estamos perante um condicionamento que é sinal dos tempos. Ou seja, os jornais, hoje em dia, tal como o PÚBLICO, dada a carência de investimento publicitário, nos seus modelos tradicionais, vêem-se forçados a recorrer a outros processos de suporte publicitário (mecenato, conteúdos, reportagens, etc.) com despesas patrocinadas, devidamente identificadas e referenciadas, como foi este o caso. Como se sabe, a publicidade é um factor decisivo na sustentabilidade dos media. E numa sociedade fundamentalmente movida pelo domínio dos mercados, com jornalismo deontologicamente cumprido, não creio que seja por aqui que se corrompa a independência de um jornal ou de um jornalista. Quando muito, esta é uma nova exigência ao desempenho profissional dos jornalistas.

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