Primeiro Mundo

A Europa é outro debate fundamental. Passa também – ou sobretudo - por aqui o nosso destino de país do Primeiro Mundo.

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1. Pedro Passos Coelho veio lembrar-nos recentemente que Portugal é um país do Primeiro Mundo, isto é, faz parte dos países mais desenvolvidos e integra uma das regiões mais ricas do mundo. É verdade. Somos um país desenvolvido e não em vias de desenvolvimento. O empobrecimento e o desemprego que a crise provocou, com todas as suas consequências sociais, ainda não nos retirou desse lugar, que o primeiro-ministro vê, e com razão, como privilegiado.

O conceito, no entanto, exige algumas explicações adicionais. A melhor maneira será, talvez, comparar o nosso país com países emergentes ainda em desenvolvimento. O Brasil é o que conhecemos melhor. Em Portugal ganha-se muito mal, sobretudo em comparação com os nossos parceiros do Primeiro Mundo. O salário médio anda há volta dos 800 euros. O salário mínimo, de tão escasso, questiona-nos sobre como é que as pessoas conseguem viver com um mínimo de dignidade. No Brasil, há uma classe média alta que, sendo escassa, vive muitíssimo bem. Os pobres (sem terem sequer um rendimento de subsistência) beneficiaram do apoio do Estado para saírem da pobreza absoluta. Nos últimos anos, graças ao crescimento económico, nasceu uma nova classe media baixa com acesso aos bens de consumo essências. A desigualdade, ainda brutal, diminuiu alguma coisa. E, no entanto, o Brasil não é um país desenvolvido e nós somos. Porquê?

Basta falar com alguém que aceitou um emprego no Brasil, aparentemente bem pago e que, de repente, percebe que afinal foi ao engano. Os salários em Portugal valem muito mais do que no Rio ou em São Paulo. A explicação é simples: por cá, qualquer pessoa, rica, pobre ou remediada, tem garantido um sistema de saúde de qualidade europeia, por nada ou quase nada. Da mesma maneira, a educação pública é quase gratuita e, mesmo que haja discrepâncias no sistema, abre as portas ao que é fundamental para uma sociedade democrática e justa: a igualdade de oportunidades. São duas formas eficazes de garantir a redistribuição dos rendimentos. As classes médias europeias, que representam o grosso da sociedade, são as grandes beneficiárias desta redistribuição. E o que é que acontece no Brasil? Quem é rico utiliza os seguros de saúde para se fazer tratar privadamente a preços calamitosos. Os serviços de saúde pública que estão ao alcance da esmagadora maioria são maus, às vezes, mesmo muito maus. A escola pública é má, às vezes mesmo muito má. É contra isto que muita gente protesta hoje no Brasil.

Apesar do acentuado empobrecimento das pessoas que a crise acarretou, seria um retrocesso brutal se o SNS e a educação pública fossem profundamente afectados na sua qualidade e na sua universalidade. É graças ao SNS que a mortalidade infantil em Portugal consegue estar abaixo da média europeia e a esperança de vida se aproxima ou, às vezes, até ultrapassa a dos países mais desenvolvidos. É útil colocar a discussão neste patamar, em vez de insistir na ideia profundamente conservadora, além de errada, segundo a qual o SNS é um luxo a que os portugueses não têm direito. Não é. É um instrumento de equidade que permite manter a coesão social e sustentar a democracia. E é o maior legado que podemos deixar às gerações futuras.

2. A segunda questão sobre a qual vale a pena discutir para entender a visão estratégica das principais forças políticas, é a negociação entre os EUA e a União Europeia para a criação de uma gigantesca área de comércio livre que ajudará a estimular o crescimento e cujo significado geoestratégico ultrapassa largamente a economia. Não é um tratado como os outros. É um tratado muito mais avançado, que se concentra nos standards e não nas barreiras tarifárias, que praticamente já não existem entre as duas margens do Atlântico. É um acordo que visa, em primeiro lugar, compatibilizar as regras a que cada produto deve obedecer, seja ele um carro ou um foie-gras. Os dois lados têm critérios de qualidade e segurança muito elevados. A Europa tende mais a recorrer ao “princípio de precaução”, mas um reconhecimento mútuo, desde que haja vontade política, é absolutamente possível. Seria a segunda oportunidade de responder à globalização em benefício também das economias desenvolvidas, depois de uma primeira fase em que, ao contrário das expectativas, os maiores beneficiários foram as economias emergentes. O perigo maior são as tentações proteccionistas que a crise e os populismos alimentam. Nos EUA, Obama tem que enfrentar a oposição do seu próprio partido. Na Europa, para além do efeito nefasto dos extremismos de direita e de esquerda, a tentação proteccionista ainda contagia alguns partidos de centro-esquerda. Seria o caminho mais rápido para a decadência e a irrelevância da Europa. Do lado do Governo, não se encontra grande entusiasmo pelo TTIP. “Se não incluir a energia, não no serve para nada”, disse-me uma fonte diplomática altamente colocada. Falta saber qual é a visão socialista. Mas, se a economia portuguesa precisa de dar o salto para um novo patamar de desenvolvimento, então as oportunidades que o mercado americano lhe abre são fundamentais.

3. O cenário macroeconómico do PS caiu como uma bomba nos partidos do Governo. Não estavam à espera. Calculavam que o PS apresentaria um programa tipo Syriza, feito a partir da metodologia habitual, ou seja, apenas para marcar presença e rapidamente esquecer. A forma precipitada como Marco António Costa reagiu ao documento dos economistas – exigindo a resposta a 29 perguntas e uma apreciação prévia pela UTAO e o Conselho de Finanças Públicas - fala por si. O PSD percebeu rapidamente o disparate e as 29 perguntas que obtiveram resposta imediata e detalhada, foram certamente para o caixote do lixo de Marco António, cuja vocação não é, sem ofensa, a elaboração intelectual. Como muita gente disse, incluindo muita gente próxima do PSD, o cenário macroeconómico colocou o debate político num “novo patamar”. Não é apenas realista e, em alguns aspectos, inovador. Faz as contas e subordina muita coisa à necessidade de baterem certo (leia-se a entrevista de António Costa ao Observador). As ondas de choque ainda estão a fazer-se sentir no Governo, ao ponto de o primeiro-ministro ter dito, também numa entrevista ao Observador, que há medidas no programa socialista demasiado liberais, até para ele. Passos continua a ser o principal valor da coligação. O problema é que as suas mais recentes intervenções políticas nos deixam, no mínimo, perplexos sobre as suas verdadeiras convicções. O elogio de Dias Loureiro como um verdadeiro empreendedor é tão chocante que nem sequer vale a pena elaborar muito sobre ele. A escolha de Marco António para ser vice-presidente porta-voz do PSD (agora, provavelmente posta em causa, pelas suspeitas de redes de influência) é uma tal falta de ambição e uma tão radical cedência ao aparelho de que contraria o retrato que Passos, com as suas gafes que não são gafes ou a sua “missão” moralizadora contra os instalados do regime, queria fazer de si próprio. Rendeu-se ao aparelho? Está a pagar os favores a quem o ajudou a chegar a líder do PSD? Não tem mais nada para dizer? As suas críticas à TSU (os cortes do PS no que pagam os empresários e os trabalhadores), porque poria em causa a segurança social, depois de ter provocado a maior manifestação de sempre contra o Governo e a troika, quando propôs o aumento da TSU dos trabalhadores para poder baixar a dos empresários, são no mínimo, muito estranhas. Ou então são reveladoras. Como disse Ferreira Leite na TVI24, assumindo o seu papel de militante do PSD, o PS roubou a agenda política e continua a marcá-la.

Falta a Europa. Passos Coelho fez um discurso interessante em Florença sobre o governo da zona euro, baseado num non-paper de Bruno Maçães, que contraria algumas das coisas que disse nos últimos quatro anos. O PS deverá apresentar as suas prioridades europeias durante a Convenção para aprovar o programa no início de Junho. Este é outro debate fundamental. Passa também – ou sobretudo - por aqui o nosso destino de país do Primeiro Mundo.
 

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