Presidente avisa que a "realidade acaba sempre por derrotar a governação ideológica"

Numa intervenção no Conselho da Diáspora, Cavaco Silva defendeu que é preciso ser pragmático e que não há espaço para ideologias. E disse que Portugal "se mantém à tona da água porque integra o núcleo duro da zona do euro" e "se saltasse fora afundava-se".

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Derradeiro recado do Presidente da República foi feito num Conselho da Diáspora Portuguesa Enric Vives-Rubio

Foi o derradeiro recado do Presidente da República num Conselho da Diáspora Portuguesa, um grupo de 84 notáveis portugueses que faz lobbying por Portugal por esse mundo fora, mas Cavaco Silva não falava para a quase uma centena de pessoas que estavam na sua frente e sim para o Governo e para os partidos da esquerda que o apoiam no Parlamento.

Pegando no exemplo da Grécia, que este ano mudou de Governo, andou em negociações com a União Europeia e depois teve que aceitar os condicionalismos de um terceiro resgate, o Chefe de Estado avisou que esta é a prova de que "em matéria de governação, a realidade acaba sempre por derrotar a ideologia". Mais: "A governação ideológica pode durar algum tempo, faz os seus estragos na economia, deixa facturas por pagar, mas acaba sempre por ser derrotada pela realidade", vincou Cavaco Silva.

O Presidente realçou que entre os governos da União Europeia o que domina é o "pragmatismo", enquanto a ideologia económica, na zona euro, "só resiste como um modo de vida de comentadores, de analistas políticos, de articulistas que fazem o deleite de alguns ouvintes e alguns leitores em tempos livres". Resistindo a mencionar casos nacionais, Cavaco Silva preferiu tentar manter as críticas num plano distante, voltando à Grécia e apontando o ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, como o "exemplo claro" de que essa governação económica só existe nos comentadores, ao passo que "na governação concreta, o que domina é o pragmatismo".

Este não é, portanto, um tempo de ideologias, porque não há grandes alternativas. Numa altura em que a coesão europeia tem sido posta em causa com, por exemplo, a proibição de livre circulação em algumas regiões e a ameaça que paira no ar de o Reino Unido poder abandonar a União Europeia, é urgente que a UE mantenha a "solidez do seu núcleo duro" e reforce os alicerces.

Como? Através da finalização da sua arquitectura: criar uma verdadeira união económica e financeira completando a união bancária e monetária. Uma "verdadeira união orçamental" poderia assegurar a disciplina orçamental e a sustentabilidade da dívida pública em todos os Estados-membros e permitiria a aplicação de uma política fundamental de estabilização. Ora, é nesse ponto que o país não pode vacilar, avisa o Presidente, que dramatiza o seu discurso: "Portugal mantém-se à tona da água porque integra este núcleo duro da zona do euro; Portugal não tem alternativa à zona do euro - se saltasse fora afundava-se."

O Presidente disse ainda que a zona euro foi submetida a uma “prova muito exigente, de resistência” com a crise da Grécia e resistiu – “e ainda bem que resistiu”, congratulou-se Cavaco Silva -, até porque, acredita, houve uma “consciência clara de que a desagregação tinha custos gigantes”. E como depois da tempestade vem a bonança, os europeus têm agora a “sensação de que os riscos de desmembramento são pequenos”.

O “barril de pólvora”
Antes de entrar nestas dissertações sobre governação ideológica, o Presidente da República falou sobre outros desafios que a Europa enfrenta actualmente e que, na sua maior parte, se desenvolveram no último ano. Considerou que a União Europeia vive tempos de grande incerteza, confrontada com “desafios muito complexos a que tem tido dificuldade de responder”, como é o caso do terrorismo, que “chegou ao coração da Europa” e deixou um sentimento geral de insegurança, ou do controlo das fronteiras com a chegada massiva de refugiados. Ou ainda do perigo de desagregação interna com a possível dissidência do Reino Unido.

A esse cenário de instabilidade interna soma-se um clima de guerra na “vizinhança”: as preocupações que a Europa teve durante anos com o conflito israelo-palestiniano foram completamente secundarizadas pela “violência dos combates” que agora se travam em países como a Síria, Iraque, Líbia ou Iémen. “O Mediterrâneo sul é um barril de pólvora”, resumiu Cavaco Silva. A que se somam, se se olhar mais para Norte, as tensões geopolíticas na Rússia, em especial nas fronteiras com a Ucrânia e na região do Mediterrâneo oriental.

Com toda a instabilidade em torno da Europa, centenas de milhares de pessoas têm abandonado os seus países e vieram até às fronteiras da Europa que, fazendo jus à sua tradição humanista, os acolheu de “braços abertos”. Mas essa hospitalidade durou pouco – apenas até a própria Europa se aperceber da sua impossibilidade física e financeira para aceitar e integrar tanta gente. O resto da história até aqui também é conhecido: das reclamações entre governos às acusações de xenofobia e erguer de muros foi um instante – o desafio que se coloca agora é se a Europa será capaz de continuar a resistir a tantas ameaças.

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