Cavaco assume imagem para a história

Presidente causou perplexidade. O protagonismo internacional que reivindica contrasta com o silêncio sobre o fim da intervenção da troika.

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Há vários entendimentos sobre o Prefácio da edição IX dos Roteiros presidenciais de Cavaco Silva Pedro Cunha/Arquivo

Uma imagem de estadista com intervenção no palco da política internacional. Este a imagem que Cavaco Silva faz de si mesmo, enquanto Presidente da República, e que quer que fique para a história, defende o diplomata Francisco Seixas da Costa, comentando o prefácio assinado por Cavaco Silva no IX volume dos seus Roteiros.

Neste texto, o Presidente salienta o périplo internacional que realizou no seu nono ano de mandato e frisa a importância do papel do Presidente da República na representação externa. Cavaco considera mesmo que a representação externa é uma das “principais funções” do Presidente da República português

“Ao dizer o que deverá ser, quer deixar para a história aquilo que ele vê como o que gostaria de ter sido e como ele interpretou o seu mandato”, defende o embaixador Seixas da Costa, que precisa: “Está a projectar para o futuro aquilo que devia ter sido e está a projectar-se e a colar-se a uma imagem mais consensual”.

Seixas da Costa não deixa, contudo, de considerar “estranho” que, “na fase final do seu mandato, Cavaco Silva não refira a presença da troika e a fragilidade por que o país passou”. O diplomata sustenta mesmo que “é um pouco bizarro que esteja a acentuar a política externa quando ele não teve intervenção externa em relação à intervenção da troika”.

O antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus sublinha a leitura que Cavaco faz: “É uma leitura moderna da imagem do Presidente da República e do papel que ele gostaria de ter”. Ou seja, “é uma tentativa de que o país passe a ler o seu mandato nesta perspectiva”.

Designar um sucessor
Por outro lado, Seixas da Costa considera que “é estranho e bizarro que, num quadro que é pré-eleitoral, o Presidente cessante esteja a desenhar o perfil de um sucessor”. O embaixador comenta assim a passagem do prefácio em que Cavaco afirma que “os interesses de Portugal no plano externo só podem ser eficazmente defendidos por um Presidente da República que tenha alguma experiência no domínio da política”.

Esta passagem é igualmente notada pelo Catedrático de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Jorge Reis Novais: “Não fica bem a um Presidente designar, dizer, quem é o sucessor.”

Já sobre o destaque que Cavaco Silva dá à vertente internacional dos poderes presidenciais, Reis Novais sustenta que “defender que o Presidente tem um papel de destaque na política externa é o mesmo que dizer que ele não tem na política interna”. Ora, se Cavaco Silva “não tem papel na política interna é porque se auto-limitou no mandato durante o actual Governo”, sublinha Reis Novais, salientando ainda que Cavaco “não se limitou de agir durante o anterior Governo, mas com este ele secunda a política do Governo”.

E conclui dizendo que discorda da tese de que o Presidente tem de “concentrar-se na política externa porque na interna nada pode fazer”. E afirma: “Não concordo. É na política interna que o Presidente tem um papel. Se não o tem desempenhado, é porque não quer.”

O catedrático de Direito Constitucional discorda assim, abertamente, da interpretação dos seus colegas de Coimbra Vital Moreira e Gomes Canotilho, que Cavaco cita no prefácio, usando um parecer de 1991 que aqueles dois constitucionalistas produziram para o então Presidente Mário Soares. Este constitucionalista da Universidade de Lisboa considera mesmo que a situação é “mais surpreendente do que parece”, uma vez que o parecer “foi pedido por Mário Soares contra ele, Cavaco, quando era primeiro-ministro”.

Já Gomes Canotilho afirma ao PÚBLICO que defendeu “sempre que deviam distinguir-se as competências do Presidente em política externa e que a Constituição podia tornar-se mais clara, mas é evidente que quem conduz a política externa é o Governo”.

Mas adverte que o sistema político português “não é o francês e a história não tem sido muito brilhante sempre que se quer acentuar as funções presidenciais, quer no sidonismo, quer no fascismo, ou mesmo na tentativa presidencialista de Spínola.” E conclui: “Devemos ter cuidado com intervenções presidenciais que substituam a luta política. Sou muito prudente quanto a defender que Presidentes sejam intervenientes, a dimensão parlamentar do regime é que é importante, não a presidencial.”

Ampliar poderes
Já o historiador João Serra, antigo chefe da Casa Civil de Jorge Sampaio, declarou ao PÚBLICO que “o que pode parecer estranho neste prefácio é o exercício de uma teoria da ampliação dos poderes do Presidente, sublinhada pelo próprio”.

Isto porque, para João Serra, “em princípio, tal conclusão, a retirar-se do seu mandato, deveria caber aos analistas e comentadores, baseados em alguma evidência empírica devidamente contextualizada e comparada”.

Daí que frise que, “sendo o próprio a enfatizar essa ampliação, pode dar a impressão, não sendo provavelmente esse o caso, de que o Presidente pretende salientar o que chama o ‘crescimento da diplomacia presidencial’ como uma espécie de resposta ao coro dos que lhe apontam um entendimento e uma prática minimalista dos seus poderes no plano interno”.

João Serra sublinha, contudo, que “para lá das deslocações oficiais, o Presidente também é protagonista da acção diplomática portuguesa em contactos menos formais, num telefonema que faz ou que recebe de um Presidente ou primeiro-ministro estrangeiro, de uma reunião que promove com empresários ou autarcas, de um contacto entre a sua assessoria e as embaixadas de Portugal ou em Portugal”. E conclui: “O Presidente é um actor político central do sistema político e como tal é visto e convocado dentro e fora de Portugal.”
 

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