Portugal precisa de uma alternativa séria e rigorosa

O que se passou na Aula Magna suscita respeito, mas desperta escassa esperança. Pode funcionar como alerta, mas não deve ser percebido como solução.

1. Durante trinta anos ninguém ousou promover a mais leve alteração na Constituição espanhola. Até que um dia, no contexto da grave crise económica e financeira, José Luís Zapatero, exercendo as funções de primeiro-ministro, telefonou ao então líder da oposição, Mariano Rajoy, dando-lhe conta da intenção de proceder à modificação daquele que se tornou o célebre artigo 135.º da Lei Fundamental do país vizinho.

O que estava em causa não era uma questão de somenos importância quer do ponto de vista ideológico, quer no plano puramente político: tratava-se de introduzir no texto constitucional espanhol o princípio do limite do valor do deficit orçamental. Zapatero, líder político inquestionavelmente progressista, que ousara enfrentar o conservadorismo da hierarquia católica e não hesitara em reabrir em nome do primórdio da verdade histórica as feridas lancinantes da guerra civil, dispunha-se a promover a constitucionalização de um princípio doutrinário concebido geneticamente pela família neoliberal radicada no pensamento de Frederick Von Hayek. Grande parte da sua base social de apoio indignou-se e aqueles que procuraram manter uma atitude compreensiva recorreram ao argumento da necessidade. Uma tal opção não poderia ser o resultado do exercício autónomo do livre arbítrio de um governante socialista, mas sim a consequência inelutável de uma posição exterior à sua própria vontade. Só um contexto de profunda fragilidade política poderia justificar uma tal abjuração de natureza programática.

No último fim-de-semana o antigo primeiro-ministro espanhol concedeu uma entrevista ao El País. Entre outras coisas, de indiscutível interesse, que contrariam a imagem de relativa mediocridade que alguns procuram associar à sua figura, faz a apologia da mudança constitucional que operou. Começa por dizer que a decisão em causa não foi induzida por qualquer influência externa, antes resultou de uma convicção própria e de uma avaliação precisa do contexto histórico que então se verificava. Zapatero invoca simultaneamente um argumento doutrinário e uma razão circunstancial. O primeiro consiste na afirmação do princípio da estabilidade orçamental, que associa aliás à experiência concreta da social-democracia nórdica; o segundo prende-se com o risco de substituição de um Governo legitimado eleitoralmente por um outro de natureza técnica, tal como tinha ocorrido na Grécia e em Itália. O que constitui o aspecto mais interessante desta revelação é a agregação de uma opção programática com a intelecção de uma prioridade política. José Luís Zapatero, que acaba de publicar um livro sobre a sua experiência governativa, onde revela a forma como se opôs à adopção de um programa de resgate em Espanha, evidencia na aludida entrevista a complexidade da vida política contemporânea. Um homem que não pode ser acusado de conservadorismo ou de pusilanimidade, advogou explicitamente a bondade de uma solução constitucional que exaspera parte significativa da esquerda europeia. O tema suscita uma interessante reflexão e demonstra a complexidade do debate político actual.

Ao mesmo tempo que Zapatero viajava pela sua própria memória, o nosso país debatia-se com o confronto entre duas visões radicalmente opostas do presente e do futuro. De um lado, o Governo reafirmava a sua vertiginosa opção pela via da austeridade punitiva; do outro lado, numa muito heteróclita Assembleia, grande parte da esquerda confundia a legítima indignação cívica com a infecunda adesão a uma espécie de pensamento mágico como forma de salvação de um modelo económico e social ameaçado pela presente crise. Não há, é bom que se diga, uma verdadeira simetria moral entre estas duas orientações. A direita extremista e neoliberal que nos governa pretende pôr em causa o contrato social fundador de um modelo de organização colectiva alicerçado em valores de inequívoca relevância civilizacional; grande parte, decerto mesmo a maioria dos homens e das mulheres que se reuniram na Aula Magna, sob a influência moral de Mário Soares, apenas visavam lutar pela subsistência de um modelo de Estado capaz de garantir a protecção quer dos direitos fundamentais, quer dos direitos de índole social. Apesar disso, este confronto empobrece o debate político nacional. Uma esquerda puramente proclamatória, dada a uma certa altivez e escassamente preocupada com o esforço de compreensão da realidade nos seus aspectos mais complexos, constitui uma inesperada e útil aliada de uma direita radical que procura parecer pragmática quando é obscenamente ideológica.

Na verdade, a velha direita sempre gostou da esquerda que rejubila com tiradas abstractas, acusações impiedosas e promessas incumpríveis. Nela encontrou muitas vezes a razão de ser da sua própria sobrevivência. O país precisa de uma alternativa séria e rigorosa, capaz de conciliar uma perspectiva diferente sobre a dimensão europeia com propostas concretas de renovação na nossa vida interna, seja no plano político, seja no âmbito de organização do Estado, seja ainda no domínio da promoção da iniciativa económica. Nenhuma proposta viável oriunda do espaço da esquerda democrática pode ignorar a necessidade de se levar a cabo uma importante reforma do Estado e da Administração Pública e de promover políticas conducentes à valorização da iniciativa económica. Contrariamente à direita de inspiração neoliberal a esquerda democrática tem a obrigação de salientar a importância das políticas públicas na promoção da igualdade de oportunidades, na criação das condições institucionais favoráveis ao desenvolvimento comunitário e na manutenção de um nível de coesão social adequado às expectativas de uma sociedade democrática. Estas preocupações concretas são incompatíveis com a exaltação de uma espécie de pensamento mágico que anula o estudo e a análise, estigmatiza o realismo propositivo e aponta para horizontes inviáveis e como tal geradores de forte desilusão colectiva. O que se passou na Aula Magna suscita respeito, mas desperta escassa esperança. Pode funcionar como alerta, mas não deve ser percebido como solução. O caminho da esquerda tem de ser outro, não tendo necessariamente que contradizer tudo aquilo que naquele local se sentiu. É óbvio que compete ao Partido Socialista a assumpção de um papel determinante na construção da alternativa de que o país carece. Não confundamos, contudo, esta incumbência que exige tempo, método, trabalho, disciplina, com orações retóricas momentâneas por muito apelativas que estas possam parecer. É por isso mesmo que o maior partido da oposição não pode ter a pretensão de concorrer com assembleias de subsistência momentânea e projecção limitada ainda que incisiva. Se o PS cedesse a esse espírito, estaria a hipotecar a possibilidade de afirmação de uma verdadeira alternativa política de esquerda em Portugal. Bem sabemos como nestes tempos em que tudo parece urgente, epidérmico, abrasivo e definitivo é difícil resistir ao apelo mediático de uma certa superficialidade retoricamente impressiva. Só que é isso que faz a diferença entre a evanescência de um discurso frágil e a consistência de uma alternativa sólida.

2. Recomendo a leitura do livro agora publicado por Zapatero a todos quantos, incluindo no interior do Partido Socialista, põem em causa a vantagem que para o país teria constituído a aprovação do PEC IV. Um dia estaremos certamente em condições de perceber quão criminoso foi o comportamento de todos aqueles que, à direita e à extrema-esquerda, nos obrigaram a solicitar um plano de resgate. José Sócrates tinha razão.

Deputado do PS

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