Por um congresso refundador

O PS realizará o seu XX Congresso Nacional condicionado e debaixo de uma forte carga emocional.

O espectáculo mediático montado em torno da detenção do ex-líder do PS José Sócrates no dia da eleição do novo secretário-geral, António Costa, não pode deixar de ser visto como um deplorável acaso.

Acreditando na máxima surrealista de que o acaso não existe, o que existe é o “acaso objectivo”, este é objectivamente um acaso verdadeiramente surreal.

Sendo de afastar qualquer intenção das autoridades judiciais envolvidas neste caso de desferir um violento ataque ao PS no momento inaugural de um novo ciclo político, o certo é que, pela forma como descambou mediaticamente este processo, o resultado foi exactamente esse.

O PS realizará, assim, o seu XX Congresso Nacional condicionado e debaixo de uma forte carga emocional. Aos cerca de dois mil e quinhentos delegados socialistas que estarão reunidos no Parque das Nações, em Lisboa, são pedidos “nervos de aço” e doses maciças de estoicismo, e até de masoquismo, para evitar que o conclave do PS seja contaminado pela doentia atmosfera de choque e consternação que domina a opinião pública, em grande medida provocada pela intolerável mediatização da operação policial que conduziu à prisão do ex-primeiro-ministro José Sócrates.

Este é apenas mais um caso que contribui para adensar a insustentável desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas, incluindo no sistema judicial, que permite violações permanentes do segredo de justiça e que é cúmplice, para dizer o mínimo, do mais descabelado desrespeito pelo direito dos arguidos à presunção de inocência.

Depois do julgamento já em curso pelo implacável tribunal “popular” da rua, a última “cilada” em que o PS pode cair é deixar transformar o seu congresso em mais uma instância desse julgamento. Por mais que custe a muitos socialistas, como advertiu António Costa, este é um ponto que necessariamente terá de ficar de fora da ordem de trabalhos do congresso, a bem da justiça, do PS e do próprio José Sócrates.

Quer queiramos quer não, o clima de suspeição em relação à democracia está instalado na sociedade portuguesa de há muito. Não há nenhuma dúvida de que o regime democrático está em acelerado processo de degenerescência. Os sinais são alarmantes, designadamente no plano político.

Segundo o relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano de 2014, Portugal está entre os países do mundo que menos confiança têm no seu Governo nacional. Entre 144 países, Portugal é o 10.º com menos confiança no seu Governo, isto é, em cada 100 portugueses, 77 não confiam no Governo. Por outro lado, segundo os dados divulgados pelo último Eurobarómetro, os portugueses são os europeus mais descontentes com a democracia do seu país. 85% dos portugueses declaram-se insatisfeitos com o seu sistema democrático, quando a média da UE se situa nos 52%.

A degradação dos indicadores de confiança no sistema político está claramente refectida nos baixos níveis de participação política, nos níveis recordes de abstenção e na perda crescente de apoio eleitoral por parte dos partidos ditos do “arco da governação”. Nas últimas eleições europeias, os três partidos que, em alternância, sozinhos ou em coligação, integram as soluções de Governo em Portugal desde 1976 – PS, PSD e CDS/PP – obtiveram, em conjunto, menos de dois milhões de votos, o que corresponde a pouco mais de 20% dos eleitores inscritos, o que representa o pior resultado de sempre destes partidos em termos absolutos.

António Costa identifica e assume este problema na moção que leva ao congresso, quando afirma que “o PS tem consciência de que o sistema partidário e o sistema democrático vivem hoje tempos em que enfrentam desafios sérios, com um progressivo afastamento dos cidadãos e níveis elevados de desconfiança nas instituições e nos atores da democracia”. E prossegue: “Mas o PS, como partido republicano e apostado no aprofundamento da nossa democracia, reconhece que tal se deve também a um sistema partidário e a uma organização de representação popular que nem sempre souberam acompanhar as mudanças políticas e sociais”.

Tudo isto impõe que o PS seja capaz, neste congresso, de um “sobressalto cívico”. De recusar cair no “buraco negro” em que se transformou o sistema político, respondendo com uma “onda positiva” capaz de reinventar e de refundar a democracia.

O PS deve lançar as bases para a construção de um novo sistema político, mobilizador e credível, que não seja imposto de cima para baixo, mas que seja construido a partir das bases da cidadania, capaz de gerar novas práticas e novos protagonistas e capaz de garantir níveis mais elevados de participação, de representatividade, de transparência, de escrutínio, de legitimação e de qualidade democráticas.

Uma agenda de transformação, que contemple medidas como:

 

  • Revisão estatutária por forma a alterar o actual paradigma partidário assente exclusivamente nos militantes, alargando o universo de participação aos simpatizantes/eleitores do PS, adquirindo estes capacidade eleitoral activa, isto é, o direito de voto em todas as eleições internas do partido.
     
  • Revisão estatutária por forma a instituir as primárias como o método de eleição de todos os candidatos a titulares de cargos políticos, designadamente, à Assembleia da República, ao Parlamento Europeu e às autarquias locais.
     
  • Revisão da lei eleitoral por forma a estabelecer uma relação mais directa entre os eleitores e os deputados que os representam, através da introdução de círculos uninominais e de compensação, suportados num modelo simples e de fácil apreensão, que respeite os princípios da representatividade e da proporcionalidade.
     
  • Revisão da lei eleitoral por forma a garantir que os eleitores têm a possibilidade de optar por um candidato específico entre os vários candidatos propostos pelo partido nesse círculo, através da introdução do voto preferencial.
     
  • Revisão da lei eleitoral por forma a permitir a apresentação de candidaturas de cidadãos independentes à Assembleia da República.
     
  • Revisão da lei eleitoral por forma a introduzir a limitação do número de mandatos dos deputados.
     
  • Revisão da lei da paridade por forma a garantir a paridade de 50% entre géneros nas listas para Assembleia da República, Parlamento Europeu e autarquias locais.
     
Os portugueses vão ter os olhos postos no congresso do PS. Só um grande partido da cidadania pode reconciliar o país com o regime democrático e ambicionar construir uma maioria progressista que devolva aos portugueses a esperança no futuro. Esta é a hora de o PS provar que está, mais uma vez, à altura da História.

Militante do PS, especialista em comunicação

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