Por que viveu Jean Jaurès?

“Porque mataram Jaurès?” A pergunta é o refrão de uma canção de Jacques Brel, comovedora evocação da tragédia que a Primeira Guerra Mundial constituiu. Faz hoje precisamente um século que em Paris, à hora do jantar, num restaurante próximo da redacção do jornal L’Humanité, que ele então dirigia, Jean Jaurès foi assassinado por um tal Raoul Villain, personagem medíocre e nacionalista fanático.

Com razão, porém, Jacques Brel coloca a questão no plural – “Por que mataram Jaurès?”. Villain, que a justiça francesa viria escandalosamente a absolver anos mais tarde e acabaria por morrer às mãos dos republicanos espanhóis em Ibiza, matou, de facto, Jaurès; o rancor ultranacionalista já o tinha condenado à morte antes. A voz, a energia, a inteligência e o prestígio deste tribuno de excepção incomodavam sobremaneira a direita belicista, a ponto de lhe dedicar um ódio totalmente irracional.

Nascido no meio rural do Midi francês, Jaurès cedo deu provas de excepcionalidade intelectual devidamente reconhecidas pelos seus professores. Ainda adolescente, partiu para Paris, onde se formaria em Filosofia na prestigiada École Normale Supérieur. Estudante brilhante, tudo o encaminhava para o destino da docência universitária, que chegou a exercer durante alguns anos em Toulouse. O apelo do envolvimento político foi, porém, mais forte. Aos 26 anos, depois de ter travado com sucesso um combate eleitoral com um representante das velhas classes dominantes, foi eleito deputado à Assembleia Nacional. Perfilhava, então, o ideário republicano em estrita fidelidade aos valores fundadores da Revolução de 1789, a que acrescentava uma genuína preocupação com aquilo que designava por “a questão social”. Terá sido por essa via que acabou por chegar ao socialismo democrático.

A sua visão acerca desta corrente de pensamento revestiu-se sempre de uma grande singularidade, que soube afirmar com inteligência e coragem. Já na tese complementar à sua tese de doutoramento o brilhante parlamentar optara por dissertar sobre as origens do socialismo alemão em Lutero, Kant, Fichte e Hegel; procurava, assim, por oposição ao pensamento marxista, salientar a filiação moral e idealista do socialismo germânico, aproximando-o da tradição utópica do socialismo francês. Não era possível ser mais claro na rejeição da doutrina materialista e pretensamente científica elaborada por Karl Marx. Não que ele rejeitasse toda a análise marxista, mas notoriamente não se reconhecia em aspectos fundamentais desse pensamento.

A originalidade do seu pensamento político manifestou-se também na abordagem de um dos casos mais relevantes e simbólicos da época em que viveu: o "caso Dreyfus". Injustamente acusado de traição à pátria, num contexto histórico marcado pela prevalência do anti-semitismo, este oficial judeu do Exército francês foi condenado e desterrado para a ilha do Diabo. Com Zola à cabeça, desencadeou-se um vasto movimento de protesto cívico. Para uma certa esquerda de orientação sectariamente marxista, o assunto deveria ser desvalorizado – no fundo, tratar-se-ia de um conflito no seio da burguesia em tudo alheio aos interesses objectivos do proletariado. Jaurès demarcou-se desta linha de orientação. Após uma ligeira hesitação inicial, empenhou-se vigorosamente na defesa da causa de Dreyfus e, a esse propósito, proferiu uma declaração de extraordinário alcance: “Se Dreyfus foi ilegalmente condenado, ele já não é apenas um oficial ou um burguês (…) ele passa a ser a humanidade, ela mesma inteiramente exposta ao mais elevado grau de desespero e de miséria que se pode imaginar.” Esta declaração não permite qualquer leitura ambígua – acima da importância da luta de classes há uma aspiração maior, há a aspiração de uma justiça universal aplicável a cada homem e a cada mulher, independentemente das circunstâncias históricas e da condição concreta dos seres humanos. A justiça não pode esperar pela instauração do socialismo.

Num outro aspecto Jaurès demarcou-se igualmente daqueles que preconizavam uma opção extremista para o socialismo europeu. Contra esses defendeu a necessidade da celebração de compromissos com os sectores progressistas das classes burguesas. Ficou célebre o discurso que proferiu a esse propósito a 19 de Agosto de 1904 em Amesterdão num congresso da Internacional Socialista; depois de ter sido vivamente contestado quer por alguns dos seus camaradas socialistas franceses, quer pelos representantes do Partido Social-Democrata alemão, invectivou um dos principais dirigentes deste último, o célebre August Bebel, lembrando-lhe que “o seu partido procurava mascarar perante o proletariado internacional a impotência da sua acção prática pelo recurso à intransigência de fórmulas teóricas radicais”. A evolução da própria social-democracia alemã viria a dar inteira razão a Jaurès. O reformismo assente na ideia do compromisso progressista, que lhe era tão caro, acabaria por se impor como método de acção política dominante em todo o socialismo democrático europeu.

De uma certa forma, Jaurès nunca abandonou a sua opção inicial pelo republicanismo democrático, apenas lhe tendo associado uma representação fortemente ética da ideia socialista. Esta combinação, à época muito contestada, acabou por conduzi-lo à adopção de uma posição muito radical no tema que marcou a sua intervenção pública nos últimos anos de vida: o tema da guerra que se adivinhava. Aí, na oposição total à guerra, foi de uma intransigência absoluta. Dedicou todas as suas energias a esse combate e apelou sobretudo à unidade do movimento socialista europeu em torno da ideia da greve geral. Esta destinava-se a impedir a participação das massas trabalhadoras no esforço de guerra tornando-a, assim, menos provável. Nesse sentido, travou uma luta desesperada contra o tempo e não foi devidamente acompanhado por grande parte da esquerda europeia, a começar pelos sociais-democratas alemães. O radicalismo discursivo muitas vezes dá nisto. Os seus últimos dias foram vertiginosos. Ainda foi a Bruxelas apelar ao entendimento dos vários partidos socialistas europeus. Manifestou uma derradeira esperança no sucesso de uma iniciativa moderadora levada a cabo pelo Governo britânico. Nas últimas horas, em Paris, questionou o Governo e finalmente, entre a lucidez e o desespero, preocupou-se com a preservação da unidade nacional. Sem o saber, embora talvez adivinhando-o, ele próprio estava prestes a chegar ao fim. Foi assassinado há precisamente cem anos, quatro dias antes do início da Primeira Guerra Mundial.

“Por que mataram Jaurés?”, perguntava Jacques Brel. Por que mataram um homem justo, que como poucos teve a premonição do horror absoluto que estava a caminho? A resposta só pode ser cruel – porque o mal muitas vezes, demasiadas vezes, triunfa na História. Mas a questão talvez deva ser colocada de outra forma: por que viveu Jean Jaurès? A resposta estará em Victor Hugo: “ Os que vivem são os que lutam.”

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