Podemos, não podemos!?

Em Portugal nos últimos dias fala-se muito pouco do próximo dia 9 de Novembro na Catalunha. No entanto, fala-se muito do "Podemos", seja porque se deseja que haja um ou porque se receia que possa vir a haver um.

Este artigo de opinião resulta da observação dos media portugueses nos últimos dias e dos comentários e likes no meu newsfeed do Facebook. Portanto é inspirado pela análise do barómetro semanal do "Projecto Jornalismo e Sociedade" do ISCTE-IUL, que classifica as notícias publicadas em Portugal, e contém o viés do algoritmo do Facebook e das minhas escolhas de amigos em redes sociais.

A Espanha, e a Catalunha, estão perto e longe. E essa distância, ou proximidade, depende do interesse que damos, ou não, ao que lá se passa — seja nos jornais, no Facebook ou nos noticiários da rádio ou da televisão.

O "referendo" da Catalunha, que poderá expressar a opinião de vários milhões dos seus habitantes, tem estado ausente da nossa atenção — embora a marcação da data de 9 de Novembro para o referendo, a sua proibição pelo Tribunal Constitucional espanhol, a sua substituição pela consulta popular actual e a sua nova proibição e a colocação, pela Generalitat, de uma queixa contra o Estado espanhol, por coerção da liberdade de expressão, seja uma novela que dura há meses.

No entanto, o "Podemos" tem vindo a afirmar-se, pelo menos desde Maio e das Europeias, como parte da nossa atenção. E, quando atingiu mais intenções de voto em Espanha do que o PSOE ou o PP, de repente, em Portugal tornou-se alvo de artigos de opinião, conversas de almoço e até de posts no Facebook de militantes partidários portugueses expressando, ora preocupação, ora regozijo pela possibilidade de implosão do sistema partidário espanhol.

Uma das questões centrais das conversas e das preocupações é saber se em Portugal podemos, ou não, vir a ter (ou se já temos) um "Podemos". Mas provavelmente essa é a pergunta errada porque em primeiro lugar deveríamos questionar como se formou o "Podemos" em Espanha.

Em 2012 tive a oportunidade de conversar com um jovem investigador no IN3 (Internet Interdisciplinary Institute) em Barcelona e assistir a um debate sobre o activismo na base das acampadas de 2011 e do movimento do 15M em Espanha. O nome desse investigador é Arnau Monterde e ele é o autor de um artigo publicado nos Dossiers do La Vanguardia sobre o poder das redes sociais no início deste ano.

Nesse artigo, Monterde argumenta que só entendendo o que levou aos protestos de 2011 se poderá compreender o que aconteceu a partir daí. Nomeadamente, as mutações em curso nestes movimentos-rede e a sua lógica de permanente tentativa de superar-se nos seus limites, até chegar à discussão sobre a passagem para a intervenção institucional — do qual o "Podemos", enquanto partido, é um exemplo.

Ou seja, para perceber se "Podemos" em Portugal, temos de perceber como aconteceu poder-se em Espanha e também perceber que características fazem de Portugal, em simultâneo, semelhante e diferente da Espanha.

Monterde relembra que a 15 de Maio de 2011, em mais de 60 cidades se autoconvocaram de forma simultânea manifestações com o lema comum de "Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros".

A indignação era o sentimento comum que unia os cerca de 130 mil participantes, dos quais 71% não pertencia a nenhum partido, sindicato ou movimento social — e onde só 6% não tinha um perfil numa rede social.

A preparação existiu, não foi um acto espontâneo, nasceu no Facebook (alguns meses antes) e foi gerida por pessoas que, apesar de não serem na sua maioria activistas, souberam criar uma campanha viral que chegou a milhares de cidadãos.

No entanto, Monterde refere que a preparação juntou também pequenos grupos relativamente novos como eram o "Estado del Malestar", os "Anonymous", os "No les votes", a "Juventud Sin Futuro", ou a "Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH)". Dessa combinação de pessoas e grupos surgiu o 15M enquanto movimento transversal potenciador de um consenso maioritário na sociedade espanhola.

Segundo os inquéritos realizados em 2011, entre 850 mil e 1,5 milhões de pessoas estiveram envolvidas em assembleias, manifestações, nas acampadas ou nas redes sociais; e entre 6 e 8,5 milhões estiveram envolvidos, de alguma forma, nas suas actividades, tendo 34 milhões de espanhóis demonstrado simpatia pelo movimento, pelas suas ideias principais ou pela razão do seu protesto.

Ainda segundo Monterde, dois anos após o 15M de 2011, 70% da população espanhola mantinha o seu interesse ou vinculação com o movimento.

Entre o 15M e o "Podemos" houve um tempo de espera e de marcos como, por exemplo, em Setembro de 2012, a convocatória do “Ocupa el Congreso”, um acontecimento que ilustra o desafio máximo à ordem institucional sustentada na Constituição espanhola de 1978 e o assumir da crítica total e frontal às instituições consideradas cada vez menos democráticas.

Um segundo marco ocorre com a PAH e a Iniciativa Legislativa Popular (ILP) de levar ao Congresso uma proposta de entrega da habitação como forma de liquidação imediata das dívidas contraídas por empréstimo pelas famílias. Com a recusa do poder político em atender a uma reivindicação, vista como positiva pela maioria da sociedade, dá-se uma nova evolução no movimento, com o abrir do debate sobre as formas de representação e o questionar sobre se devem existir ou não novas expressões do movimento no espaço eleitoral.

O "Podemos" é assim produto, entre outras, destas evoluções e experimentações até à sua institucionalização formal enquanto partido que almeja exercer o governo para lidar com as raízes da indignação e não apenas representar a indignação no sistema político.

E então em Portugal? Podemos ou não podemos? A resposta do cientista social deve ser, por enquanto, "Nim".

Temos em Portugal as raízes da indignação em tudo idênticas às sentidas em Espanha, banqueiros com comportamentos em tudo idênticos, políticos com atitudes e práticas em tudo semelhantes, um sistema democrático que é visto como incapaz de lidar com as injustiças percebidas e com as desigualdades sentidas.

Tivemos também milhões e centenas de milhares nas ruas em diferentes ocasiões mostrando a sua indignação. Tivemos a sua convocatória feita nas redes, o posterior surgir de múltiplas associações com origem nas diferentes formas de indignação e a ocupação do espaço mediado na rede e nas televisões por muitos dos que estiveram presentes nos protestos.

No entanto, há diferenças, quer as que surgem da leitura e da comparação com os acontecimentos em Espanha, quer as que que têm a ver com o estádio actual do ciclo político português, dos partidos, das formas de organização e protesto, do número de utilizadores de Internet ou até da válvula de escape migratória que tem dizimado o número de jovens de forma diferente nos dois países.

Tendo exposto o anterior, também deve ser dito que em cada um dos países Europeus do Sul os fenómenos de indignação têm conduzido a diferentes resultados. Portanto, não tem de haver um "Padrão Podemos", porque tal não existe. Existe sim um padrão de indignação que se mobiliza para atacar o status quo institucional de formas diferenciadas.

Em Itália, tivemos o "Cinque Stelle" de Beppe Grilo e depois a crença, agora já debilitada, no regresso do ideário da Democracia Cristã corporizada por Renzi no partido herdeiro da esquerda e do centro italianos. Na Grécia temos o Syriza, depois do haraquíri do PASOC e da debilitação dos tradicionais partidos de centro direita. Em França temos a Frente Nacional como polarizador da indignação. E, em Espanha, temos o "Podemos" como resposta à decomposição do PP por via do vírus da corrupção, da aparente inércia mobilizadora do PSOE e, é claro, tudo isto acompanhado pela dimensão de um "nacionalismo pela positiva" em acção paralela.

Se olharmos as tendências presentes no actual momento social e político português vemos que as bases para o surgir de um "Podemos" estão latentes e podem ou não ser aceleradas muito rapidamente. Tal, apenas depende dos diferentes protagonistas, ou seja, dos políticos dos partidos tradicionais, dos novos actores políticos, dos movimentos sociais, do grau de corrupção latente e que venha à luz do dia, da velocidade de decomposição de partidos no "arco de poder", mas também da crise e ruptura nos outros partidos, mesmo aqueles que de tão sólidos aparentam não se poder decompor.

Que "Podemos" podemos nós ter? Como ninguém pode erradicar algo que se apresenta, no actual contexto, como dotado de inevitabilidade, apenas podemos tentar perceber a amplitude e o tempo de latência e eclosão do fenómeno.

Tanto poderemos ter uma materialização da indignação face à injustiça e às desigualdades com 10% ou 15% em 2015 como o poderemos só ter em 2017 ou 2019 com 30%.

Depende? Só depende mesmo de todos nós, tanto dos indignados com os possíveis "Podemos" como dos indignados com o que "Temos".  

Gustavo Cardoso é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris

 

 

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