Pedro Passos Coelho: líder de uma geração que já não tem nada a perder

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Passos Coelho foi eleito a 5 de Junho Foto: Daniel Rocha

Há sempre três dimensões num retrato político. O personagem, o seu pensamento e a circunstância. O do primeiro-ministro ainda está apenas em esboço. Porque "entrou e saiu" da política. Porque rompeu com a aristocracia do seu partido. Porque apostou - por táctica ou por convicção - num pensamento de matriz liberal que não faz parte da tradição política nacional. Porque representa uma nova geração de políticos que só conheceram a democracia.

Texto originalmente publicado na revista 2, de 3 de Junho de 2012

Desvendar o mistério chamado Pedro Passos Coelho continua a ser, um ano depois da sua eleição, um exercício arriscado. A História ainda pode ser generosa com ele, se a história desta crise acabar bem e não demasiado tarde. Mas também pode vir a ser implacável. Hoje já menos gente se atreve a subestimá-lo. Continuam a prevalecer, todavia, duas narrativas sobre ele à espera da prova dos factos. Aquela que o descreve como um político sem dimensão e sem pensamento, que se limitou a aproveitar uma oportunidade. A que o vê como o intérprete de uma nova geração e de uma nova visão, autónoma em relação ao passado, mais ousada em relação ao futuro, que constitui, no fim de contas, o único caminho que falta experimentar para libertar o país das amarras do atraso estrutural e de algumas ilusões europeias. Para este retrato, todas as perguntas são legítimas. As respostas são ainda muito incompletas.

No fim da tarde, o Palácio de São Bento está silencioso e tranquilo. Reina a ordem no seu gabinete. Lá fora desenrola-se uma tempestade política. O primeiro-ministro tem e não tem tempo a perder. Durante duas horas, o telefone não toca. Olha apenas uma vez para o relógio. Não muda de posição. Raramente deixa transparecer um sinal de irritação. Não, a palavra é excessiva. Talvez seja melhor dizer algum incómodo. Explica tudo o que entende que deve ser explicado. Não faz cedências. Uma parte do mistério que ainda envolve o personagem começa aqui.

Passos Coelho é um sedutor. Pelo trato, pela educação, pela afabilidade, pela cortesia. Depois, há uma parede de vidro, invisível, que rapidamente se percebe que é intransponível. Quando foi eleito líder do PSD, em Março de 2010, toda a gente quis saber quem era o homem que ousara desafiar a oligarquia cavaquista. Dos grandes espaços africanos à dureza de uma aldeia transmontana. A imersão precoce na política. A liderança da JSD. O desprendimento da política. "Entrou e saiu", "liga e desliga com uma enorme facilidade". Sem alarde. E sem cobranças. Regressou para liderar um país em plena tormenta. Entre a cordialidade e a distância, há um campo difícil de decifrar. Que apenas se pode intuir. Mário Soares nunca escondeu a simpatia pelo personagem, incluindo nos momentos politicamente mais inoportunos. Ninguém como ele sabe separar as ideias das pessoas. "Gosto dele porque é simpático e inteligente, mas eu sou um socialista e ele é um neoliberal". O que parece não ter grande importância. "Há dias, logo a seguir a eu ter dito o que disse sobre o Governo e sobre a troika, encontrámo-nos numa coisa pública e ele cumprimentou-me com a simpatia de sempre." Aparentemente, Passos retribui. Nunca cortou as pontes com Soares. "Talvez sejam os dois muito ciosos da sua própria autonomia". Talvez. Soares simboliza a história da democracia portuguesa. Passos a geração que pela primeira vez se libertou do momento da ruptura com o antigo regime e da visão que emanou dessa ruptura. A democracia rotinizou-se. Os políticos também. Vai um mundo entre eles. Passos Coelho foi, no entanto, o primeiro primeiro-ministro de um governo de centro-direita a comparecer no Parlamento no dia 25 de Abril exibindo um cravo vermelho. Sinal de libertação?

Há qualidades de carácter que o definem e que um ano de governo através da maior crise vivida pela democracia portuguesa não parece ter conseguido alterar. Assunção Esteves, a Presidente da Assembleia da República que resultou do primeiro "erro" cometido pelo novo primeiro-ministro (a escolha falhada de Fernando Nobre para segunda figura do Estado), não faz parte do círculo mais próximo. Foi, no entanto, uma das suas principais apoiantes no PSD. Sobre o carácter, resume tudo numa frase: " É de uma seriedade inatacável. E tudo o que é transparece, como dizia Torga". Sérgio Sousa Pinto, que coincidiu (por pouco tempo) na liderança da Juventude Socialista quando Passos Coelho chagava ao fim dos seus três mandatos à frente da JSD, é categórico. "Quando a JSD estava muito descredibilizada pela sua relação íntima com o poder - era quase um Estado dentro do Estado, ou um partido dentro do partido, no auge do cavaquismo - ele conseguiu injectar-lhe alguma autonomia. (...) Era muito articulado, muito sólido, inteligente." Nessa altura, "fazia uma crítica pela esquerda ao cavaquismo".

No PSD, há uma geração que se formou nessa JSD que lhe é fiel, até quando parece estar ideologicamente distante. Talvez porque compreenda que este é o momento dela. Chegou ao poder num tempo de tormenta em que tudo se joga. Se correr mal, sai de cena. Sem contemplações. Provavelmente, a crise transformará os portugueses em gente mais exigente e com mais memória.

Que geração é esta? Está já distante da geração dos fundadores que ainda hoje pesa sobre a paisagem política do país. Distingue-se da geração seguinte, dominada por gente que vinha das academias ou da elite intelectual. Como António Guterres ou como Cavaco Silva. "É uma nova geração que se fez nas juventudes partidárias e nos aparelhos dos partidos", diz o académico e historiador António Costa Pinto. "Passos, Sócrates ou Seguro." De gente normal? "Faz todo o sentido dizê-lo". "A nossa democracia é relativamente jovem e deu origem a uma classe política também relativamente jovem que fundou os partidos, que os rotinizou e que os levou ao poder". Era uma geração que, paralelamente à vida política, se tinha destacado pela sua vida profissional. A geração actual apresenta duas diferenças que podem ser vistas como problemas. "A primeira é banal e seria quase inevitável: já nasce com o perfil clássico de um político profissional criado nas juventudes partidárias". A segunda é particular e é nova. "Portugal não tem, como a Inglaterra ou a França, poderosos centros de formação de elites onde a elite política também é gerada e testada antes de chegar à vida política profissional". Pedro Passos Coelho faz parte dessa rotinização democrática sem a componente elitista. "Há, por isso, uma certa insatisfação com a chegada ao poder desta geração que não se destacou em nada e que é mais difícil de ler".

Pedro Passos Coelho encaixa e não encaixa nesta definição. O historiador não é muito sensível ao argumento do seu afastamento da vida política por longos períodos. Não é um outsider nem veio de uma carreira de reconhecida independência. "Foi para o mundo empresarial mas de uma forma muito protegida, muito ligada ao próprio partido e aos seus notáveis."

Outro historiador, que vê Portugal à distância de Dublin mas não esconde a sua proximidade política com o personagem, não vê as coisas sob o mesmo prisma. "Para mim, passou muito pouco tempo para começar a criar estes grupos. Vejo as coisas mais pela dimensão da tarefa e menos pela personalidade política". Filipe Ribeiro de Meneses destaca as circunstâncias do exercício do poder, "muito mais exigentes" - "Salazar era dono do seu tempo, hoje nenhum primeiro-ministro é dono do seu" -, e a cultura de uma nova geração que já não tem nada a perder. "As gerações anteriores são as que ditam os parâmetros mas são também as que têm os empregos e as reformas assegurados, nós não." É este também o novo lado da "normalidade" de Passos, a situação absolutamente anormal em que governa.

José Pacheco Pereira, hoje distante da política e ainda mais da nova geração do PSD, é muito mais contundente. "Os políticos que são formatados nas juventudes partidárias são movidos por uma mera ambição de poder. (...) Sabem pouco sobre o país, são formados numa redoma, sempre num trem de vida muito associado ao poder político, com empregos dependentes do Estado e das autarquias, tudo num circuito muito fechado". Passos Coelho "não é diferente."

A sua geração não pensa necessariamente assim. A vida profissional marcou-o muito. "Regressou diferente depois de ter passado pelas empresas. Notou-se uma grande diferença no seu pensamento político", diz um velho companheiro da JSD. De resto, "era como se nunca tivesse saído da política, a mesma intuição, o mesmo interesse pelas pessoas, o mesmo prazer no exercício da política, o mesmo conhecimento do partido." O próprio, numa entrevista ao PÚBLICO em Fevereiro de 2009, depois da sua primeira tentativa de conquistar a liderança, se define como um político dos pés à cabeça. "Vejo-me como um político, é uma coisa que nasce connosco", independentemente dos cargos que se ocupam ou não ocupam em cada momento.

Reduzi-lo a uma só dimensão, seja ela a da "formatação" operada pela JSD, ou a experiência empresarial, seria um tremendo erro. Passos Coelho não tem um percurso normal. Sai de cena com demasiada facilidade e sem cobrar nada. Viveu uma vida demasiado pouco convencional para que isso não constitua um traço do seu carácter. "Na maior parte da minha vida, fiz coisas que não eram expectáveis", diz na mesma entrevista. "Fui pai muito mais cedo do que era usual, fui trabalhar antes de ir para a faculdade, fui, aos 21 anos, viver com uma mulher por quem me apaixonei, sem ter casado, casei quando a minha filha mais velha nasceu". Por isso, não frequentou as melhores escolas onde as elites se educam. Formou-se de outra maneira. A rotinização da democracia passa também por aqui. A elite olha-o de revés? É normal. Ele olha de revés para a elite que trouxe o país até aqui. Não acha que tenha feito grande trabalho. Quando regressou ao partido para iniciar o caminho em direcção à liderança, voltou a colocar a ideologia em cima da mesa. A partir de meados dos anos 80, "o PSD enfraqueceu deliberadamente a sua visão ideológica e programática (...) e tornou-se uma espécie de arauto da tecnocracia" (Maio de 2009). A tecnocracia passou a ser um bom pretexto para se governar ao centro. A política despolitizou-se. Hoje não pensa muito diferente quando analisa o percurso que trouxe o país até aqui. Governou-se sempre para o curto prazo.

No fundo, foi essa elite que abriu o caminho para uma oportunidade "liberal". Que ele aproveitou. Para ocupar um espaço de diferenciação que estava livre? Por convicção política? Porque chegou até aí? A controvérsia está, naturalmente, instalada.

Na JSD, apresentava-se pela esquerda social-democrata. Foi "vice" de Marques Mendes durante um breve período de tempo (2005-2006). Reaparece para se candidatar à liderança em 2008, já como representante do pensamento mais liberal dentro do seu partido.

Marca uma ruptura com a cultura política tradicional da direita portuguesa onde o liberalismo nunca criou raízes. Durão Barroso chegou a fazer um ensaio no mesmo sentido, rapidamente apagado pela composição do seu breve Governo entre 2002 e 2004. António Borges chegou a sonhar com a liderança do PSD. (Hoje está muito próximo do primeiro-ministro e é certamente uma das pessoas que mais o influenciam em matéria económica).

Passos transformou esta pulsão numa proposta política. Transformou? Esta é uma história que se vai fazendo de opiniões distintas e de contradições. "Limitou-se a ocupar o espaço que estava vago", diz alguém que o acompanhou durante algum tempo nesta caminhada em direcção ao poder, e que prefere preservar o anonimato. "Carregou as cores para fazer a diferença", admite um antigo companheiro da JSD. O que se compreende. "O país era uma planície ideológica". "O Estado tinha ido demasiado longe". Meia dúzia de bandeiras chegaram para provocar a polémica. A ideia do Estado-garantia. A privatização da CGD. A liberalização do despedimento individual.

Há uma ruptura política, que tem a ver tanto com o pensamento como com a realidade. A cultura política dominante trouxe-nos até ao muro. Era o momento de propor outra coisa. Nesse sentido, esta ambiguidade alimenta as duas interpretações possíveis.

Nada é consistente na sua opção "liberal", diz Pacheco Pereira. "É uma cultura superficial, formada nos blogues, que não resiste ao confronto com a realidade porque desconhece essa realidade." Não faz segredo das suas críticas. São públicas e, geralmente, bem fundamentadas. "Não se é um genuíno liberal quando se parte do liberalismo económico, só se é verdadeiramente liberal quando se parte do liberalismo político". Um programa reduzido ao mero liberalismo económico dá como resultado, por exemplo, "uma alteração radical no equilíbrio das relações de trabalho que nem sequer tem a ver com as necessidades da economia". Refere-se à reforma laboral negociada com a UGT. Concluiu que Passos tem uma "ideologia conjuntural" que oscila conforme as conveniências.

António Costa Pinto vê as coisas de outra maneira. "Ele tem uma experiência política muito grande, sabe que o pragmatismo tem dominado a acção dos políticos na democracia portuguesa, sabe que a grande maioria da sociedade portuguesa não partilha valores de natureza liberal nem os aceita bem". E, mesmo assim, "não hesita em afirmar esses valores".

"A troika deu-lhe uma oportunidade que provavelmente não teria de outra maneira", diz um alto quadro da finança, referindo-se ao programa de ajustamento com o qual o país se comprometeu a troco do financiamento externo. "É difícil distinguir o que resulta do seu pensamento e o que resulta do programa da troika, que é claramente enformado por estes princípios [liberais]". O que é de Passos e o que resulta das circunstâncias? "Omaître à penser do Governo é o ministro das Finanças, e ele é claramente um liberal no sentido clássico, bem fundamentado. O facto de o primeiro-ministro o ter ido buscar ou de ter chamado António Borges vai no mesmo sentido." É suficiente para sustentar um programa e para deixar uma marca? "O problema é que Passos Coelho ainda não tem a densidade ideológica para pensarmos nele como uma referência de pensamento".

Costa Pinto, de novo: "Para mim, que ele aproveita a oportunidade da troika para realizar o seu programa é claro, mas o mais interessante é a componente discursiva". Aquilo que as pessoas classificam de gaffes, não são gaffes. "Ele tem arriscado um discurso liberal em áreas raramente afloradas: o elogio da emigração, o desemprego como oportunidade e como mobilidade... É isto que me parece novo". Está a afirmar um conjunto de crenças políticas que foram feitas em conjunturas críticas de outras democracias. "[A primeira-ministra britânica] Margaret Thatcher assumiu esse risco numa conjuntura extremamente difícil e reformou, efectivamente, a relação entre o Estado e a sociedade inglesa..." Não terá muito tempo. Mas tem uma "janela de oportunidade que é o programa da troika imposto pelos credores, a ausência, até ver, de grandes movimentos de contestação social, e a posição difícil em que se encontra o PS". Depois, haverá um novo ciclo eleitoral. Ao historiador resta uma dúvida. "Este modelo vai consolidar-se ou vai desfazer-se contra a realidade e obrigá-lo a ser rapidamente muito mais pragmático?"

Estamos a falar do discurso e das pessoas. Aplicar um programa que opere uma mudança é muito mais complexo. "O resultado até pode ser o inverso", avisa o mesmo quadro financeiro. "O programa da troika aplicado nas circunstâncias em que está a ser, num país sem soberania financeira e condicionado pela dívida, acaba por ser um projecto de libertação da sociedade civil conduzido pelo Estado". Da forma mais pura e mais dura, através de uma direcção central que começa no topo e que se impõe ao resto da sociedade, porque as pessoas não têm sequer condições para resistir. É esta a ironia. Que não retira mérito ao personagem. "Veio de Trás-os-Montes, tinha ambição política, tem qualidades de liderança e qualidades humanas, foi andando, inspirou-se aqui e ali e foi construindo o projecto em que hoje acredita".

Pode ganhar esta batalha. "Se as coisas correrem bem, aqui e na Europa, ele levou-nos lá." Receberá o prémio. Sozinho. Também pode haver uma catástrofe. "Mas, nesse caso, provavelmente o sistema político teria de refazer-se de cima a baixo".

Seja como for, não se faz esta aposta de ânimo leve. É de altíssimo risco. Exige uma grande firmeza. E, provavelmente, também uma grande convicção.

"Ele é um falso moderado", diz o sociólogo Manuel Villaverde Cabral. " E tem esse instinto liberal, o que, em Portugal, ainda é uma raridade em política." Fala para quem, num país dependente do Estado até nas mentalidades? Pode falar para "uma grande camada social, dos chamados pequenos e médios empresários que gostariam de enriquecer trabalhando, que nunca tiveram voz política neste país". Quando diz que o desemprego é uma oportunidade, há uma parte do país que o entende. Aquele que costuma dizer: "Não há falta de trabalho, há é falta de gente que queira trabalhar". "O problema é que como este pensamento, que não tem tradição, também não tem pensadores", diz Villaverde Cabral. A sua "gaffe" sobre o desemprego teria feito todo o sentido, "se tivesse sido acompanhada por uma iniciativa política". "Ora, o Instituto de Emprego e Formação Profissional está conceptualmente ultrapassado - seriam precisas políticas activas de emprego liberais". "Novas".

Há o discurso. Falta o programa? "Há mais vontade liberal do que tem havido capacidade de executar as reformas". "O Governo de Passos Coelho ainda tem um duplo rosto: o que olha o passado e o que olha o futuro. O rosto de Vítor Gaspar e o rosto de Miguel Relvas." Um dia, terá de se libertar da troika e de se libertar do partido.

Um ano não chega para saber se será capaz. Mas um ano chega para perceber que o primeiro-ministro não recuará facilmente. Nem perante o desemprego que ultrapassa as previsões. Nem perante o discurso do "crescimento". Nem perante as pressões do partido.

Há um acréscimo de convicção ideológica que o distingue. Manuela Ferreira Leite poderia adoptar medidas de austeridade (quase) tão duras em nome da necessidade de quebrar a espiral do endividamento. Fá-lo-ia em nome da necessidade. Provavelmente um governo socialista não poderia fazer muito diferente. Passos Coelho fá-lo em nome de uma ruptura. Que não surgiu do nada.

Há já um longo caminho percorrido por uma geração que queria tomar o PSD por dentro. Começou no Compromisso Portugal, que foi a primeira tentativa para construir um pensamento liberal assente numa nova geração. Misturou muita gente nova mas ainda muitos dos interesses mais instalados. Durão Barroso acabou por não aproveitar essa onda. Sócrates chegou a absorver parte dela. Passos deu-lhe continuidade.

Os seus apoiantes mais próximos reivindicam para esta nova leva "liberal" um longo trabalho de casa. O movimento "Pensar Portugal" foi o primeiro movimento lançado para "reflectir estrategicamente sobre o país", diz Teresa Leal Coelho, vice-presidente da bancada do PSD no Parlamento, muito próxima do líder. Nasceu em 1998, mas foi ainda uma iniciativa da sociedade civil. Uma forma de "democracia participativa", a partir de um núcleo restrito mas aberta ao debate com os vários sectores da sociedade. "Foi intenso. Reuníamos quase uma vez por semana. (...) Essa reflexão partia do sentimento de que o país tinha chegado a uma encruzilhada, tentávamos elaborar um conceito estratégico adaptado ao mundo global. Discutimos muito a Europa". Tinham um "desígnio político". Mais tarde a Plataforma Construir Ideias deu continuidade a esta reflexão mas já tendo em vista a candidatura de Passos Coelho à liderança do PSD. Passou a ter uma ambição programática. Consolidou um grupo.

Talvez por isso, Teresa Leal Coelho não veja esta ruptura ideológica como um risco demasiado grande mesmo num país sem tradição liberal e com uma enorme dependência do Estado. Voltamos às gaffes que não são gaffes. Pedro Passos Coelho fala para um país que não existe? "Não sei se é tanto um país que não existe mas um país que nós pensamos que não existe (...) As afirmações que são percebidas comogaffes são mal recebidas pela nomenclatura que as filtra por razões dogmáticas". Invoca o liberalismo político que Pacheco Pereira pensa que não existe. "O liberalismo político é uma corrente ideológica ou uma filosofia política que parte da primeira das verdades: que todos nascemos livres e iguais". Tão simples como isto? "Ele diz que qualquer pessoa deve viver com dignidade e com honra, e os comentadores gozam com isso."

Há naturalmente uma ruptura geracional. "Eu gosto de chamar-lhe a geração da queda do Muro de Berlim". Foi esse acontecimento que marcou a sua formação política. Mais do que o 25 de Abril. "É uma geração que não pede desculpa por viver em liberdade". Talvez essa geração seja mais permeável aos ventos da Declaração de Independência dos Estados Unidos e às concepções de liberalismo político de matriz mais anglo-saxónica. No livro que publicou em 2010, antes da sua candidatura vitoriosa à liderança,Mudar, Passos fala da responsabilidade de uma "geração democrática" que chegou à idade madura, "que não experimentou outras vivências não democráticas e que, não tendo termo de comparação, se tornou mais exigente e mais impaciente com o actual estado de coisas."

Talvez haja ainda uma segunda chave para compreendê-lo e que é a forma como olha para o mundo. Acusam-no de não ter um discurso europeu. Nunca chegou a ver a Europa como um ideal e é isso que também o distingue das gerações anteriores que lideraram o país. A Europa já não é a matriz do seu pensamento político.

Não foi uma coisa que surgiu agora, perante a crise existencial do projecto de integração europeia. É mais antiga. Quando liderou a JSD não escondia uma visão mais "soberanista" da integração europeia. Sempre preferiu a Europa dos Estados ao Estado europeu. Escreve, no seu livro: "[Fomos] ingénuos ou provincianos, ao fazermos de conta que queríamos ser apenas europeus, buscando a riqueza na Europa, enquanto ela própria precisava de a ir buscar a outros lados onde nós, por incrível que pareça, estávamos mais próximos".

Filipe Ribeiro de Meneses admite que o seu pensamento europeu não encaixa necessariamente na cultura política própria da União Europeia. "Não sei, por exemplo, o que pensa da manifesta perda de poder das instituições europeias supranacionais. Se pensa que devem ser os governos a dirigir a Europa. Ou qual o modelo que mais beneficia Portugal". Não iria ao ponto de dizer que é "pós-europeu". Aceita que o seu pensamento é "mais global do que europeu, encaixa num modelo mais anglo-saxónico."

Assunção Esteves, cujo pensamento federalista é conhecido, diz que ele está a evoluir. Quem se senta à mesa do Conselho Europeu aprende depressa. Já vimos antes outras "conversões". Além disso, a Europa passou a fazer parte da política interna - saiu das Necessidades para São Bento. A crise colocou-a na sua agenda diária. Os efeitos da aprendizagem são visíveis, mesmo que mais por necessidade do que por convicção.

Hoje, diz com absoluta tranquilidade que a crise vai obrigar a Europa a avançar no sentido de uma maior integração - vai ser preciso somar à união monetária a união económica e esta implica um grau elevado de união política. Mas não corre a foguetes. Não espera que os líderes europeus se reúnam numa noite e decidam criar um "governo europeu". Não há condições nem há vontade política. Não acredita nessa espécie de "vanguardismo". Sabe, apenas, que é esse o caminho para salvar o euro, para salvar a Europa e para salvar o país.

Não deixa por isso de olhar para a Europa com uma boa dose de cepticismo: ou consegue adaptar-se às novas exigências da globalização, competindo em campo aberto com as grandes potências e os grandes espaços emergentes, ou entrará em declínio. "Podemos admitir que a Europa possa ficar a marcar passo, presa a um certo proteccionismo que preserve o chamado Estado social europeu, ou que acelere as suas reformas e se prepare para uma maior abertura e competitividade externa", escrevia em 2010. Antes de a crise explodir.

"É talvez um pós-europeu que não deixa de perceber que, sem um pé muito firme na Europa e uma forte relação com o seu centro, não valemos tanto lá fora", diz Teresa Leal Coelho. Em África, no Brasil e, sobretudo na Ásia. "Qualquer que seja o caso, Portugal deverá preparar-se (...) para fazer valer a sua inserção estratégica na Europa e a sua aposta numa estratégia atlântica para escapar ao empobrecimento e para acertar o ritmo com as mudanças em curso", escreveu na mesma altura. "O que ele quer, porventura, dizer é que hoje nós estamos em competição com o mundo inteiro. E que o mundo é assim", diz Filipe Ribeiro de Meneses.

No fundo, o mesmo olhar sem ilusões e a mesma concentração no essencial. E o essencial é cumprir o programa da troika para voltar a ganhar credibilidade externa. O mais depressa possível. Passos Coelho entende que a economia e, por via dela, as pessoas pagariam um preço mais alto se se prolongasse o tempo do ajustamento. Tudo o resto parece remetido para um lugar secundário no seu discurso.

"É inflexível". Dificilmente sairá do "custe o que custar". A sua ideia é simples. É preciso aproveitar a crise para mudar. E há uma janela de oportunidade que não durará mais do que dois ou três anos para tornar essa mudança irreversível. Tem a convicção de que uma maioria de portugueses já compreendeu que, do outro lado da crise, não está o regresso ao passado. Que, depois deste hiato, haverá outra coisa: um país menos rico, mais exigente, mais responsável e um Estado menos presente na economia e na vida das pessoas. Dificilmente sairá deste guião que estabeleceu para o seu Governo.

Talvez seja esta, também, outra chave para a compreensão do personagem: uma atitude de cepticismo - em oposição ao idealismo - de uma geração que sabe que o futuro não vai ser melhor do que o presente. Nele, esta convicção chega a assumir as cores da indiferença social. "Falta-lhe até a clássica demagogia tão própria da classe política", diz Costa Pinto. "Falta-lhe compaixão", diz a jornalista Maria João Avillez. "Essa racionalidade, que é uma das suas características, tem o enorme risco de ser interpretada como indiferença", diz um dirigente social-democrata que o conhece bem. É uma característica pessoal. Também assenta na convicção de que a crise, que é mundial, obriga a valorizar outros valores. A mudar de vida. Há um outro "ajustamento" a fazer. Das mentalidades.

Podemos regressar ao personagem e à barreira invisível. Passos Coelho é um solitário. "É uma rede feita de relações bilaterais. Não há reuniões de grupos. Não é um tipo de balneário". As relações são institucionalizadas. Mesmo com os mais velhos companheiros. A influência é difícil de exercer. "É muito duro vender-lhe uma ideia. Tem de ser muito sólida, passar o crivo da segunda pergunta."

O mesmo modelo funciona ao nível do Governo. O facto de serem poucos ministros permite-lhe ter reuniões regulares com cada um deles. "Normalmente confronta-os com as más notícias".

Se correr mal, "cai-lhe tudo em cima", reconhece um alto dirigente do PSD que sempre o acompanhou. "A grande interrogação sobre o sucesso da sua estratégia está na forma como a elite reagir", conclui Costa Pinto. "Não é apenas a sociedade que depende do Estado, a elite também depende do Estado e tem tido uma grande capacidade para utilizar os recursos do Estado em proveito próprio". Até que ponto Pedro Passos Coelho terá capacidade para enfrentá-la? "Se resistir a isto, resiste a tudo", diz Ribeiro de Meneses.

Ainda falta muito para saber a resposta. Ou não faltará?

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