Passos e as 40 contribuições

A perfeição não é requisito para se ser PM, mas já o é um elevado sentido de ética republicana e, de forma mais comezinha, uma conduta que estabeleça algum exemplo.

1. Sabemos todos que estamos, na prática, em campanha pré-eleitoral e, por isso, qualquer acção ou omissão dos agentes políticos é particularmente escrutinada e ganha uma repercussão mediática especial. Também não ignoramos que a política é, salvo honrosas excepções, há muito entendida como simples instrumento para chegar ao poder, sem que o seu exercício corresponda ao bem da polis. Creio que mesmo nas arquetípicas formas de democracia grega nunca assim o foi por completo, pela límpida razão de que nós, seres humanos, somos imperfeitos/as.

E ficámos agora a saber, pela boca do próprio, que o primeiro-ministro (PM) também o é. Faz parte da “condição humana”, diria Malraux. Simplesmente, não é a perfeição que tem estado em causa nos últimos dias, mas sim a ética na política, na condução geral da vida de cada um dos beneficiários da Segurança Social e a credibilidade de quem está à frente de um órgão de soberania.

Juridicamente, as dívidas prescritas geram obrigações naturais que, por definição, não são exigíveis em tribunal, pelo que o Estado só pode “pretender” e não “exigir” o seu pagamento. Donde, Passos Coelho ou qualquer outro cidadão não violava qualquer preceito legal se não liquidasse uma obrigação prescrita. Do mesmo passo, a ignorância da lei — excepto em específicos domínios do Direito Penal não exime ninguém do respectivo cumprimento (art. 6.º do Código Civil). É óbvio que se trata de uma ficção legal, pois a esmagadora maioria dos cidadãos (felizmente para a sua sanidade mental) não lê o Diário da República ou o Jornal Oficial da União Europeia. Trata-se de uma ficção necessária, sob pena de nenhuma norma ser cumprida mediante a “simples” alegação da ignorantia legis.

2. Porém, o cidadão Pedro Passos Coelho não é um comum mortal. É, neste momento, o PM de um Estado em que, na prática, o sistema constitucional decorrente da Lei Fundamental de 1976 o erige, em muitos aspectos da vida colectiva, em principal responsável pela condução da política.

A perfeição não é requisito para se ser PM, mas já o é um elevado sentido de ética republicana e, de forma mais comezinha, uma conduta que estabeleça algum exemplo. Como se pode conduzir um Governo que, nas palavras de um seu ex-ministro, foi responsável por um “brutal aumento de impostos” e de contribuições para a Segurança Social e não ser o primeiro a tê-lo feito no passado? O argumento de que à época não era PM não colhe: é sinal de crasso amadorismo aceitar um cargo destes sem se ter feito uma “revisão” da vida anterior em múltiplos aspectos. Este, sobretudo, é dos primeiros a ser escrutinado pelos próprios partidos em qualquer democracia estabilizada e em que a competência dos “assessores” não seja só uma palavra numa nota curricular. Amadorismo ou, o que é mais grave, sensação de impunidade: o próprio Passos sabia da situação, mas só pretendia regularizá-la depois de deixar o cargo para não se pensar que fora objecto de “tratamento de favor”… O argumento é um verdadeiro “conto de crianças”, tão ao gosto do PM.

3. Aceitando que “a melhor defesa é o ataque”, Passos disparou contra Sócrates. Mais um sinal de amadorismo e, sobretudo, de falta de conhecimento do sentir português profundo. Bater em quem já está de rastos não costuma comover o nosso povo. Comparar-se com alguém que alegadamente terá cometido delitos no exercício das funções que Passos ora ocupa é quase haraquiri: há uma “coisa” chamada “presunção de inocência” que um PM não pode alegar que desconhece (mas o senhor está perito nisso, apesar de ainda ser novo para o Alzheimer…) e em política, como em geral na vida, não nos defendemos escondendo-nos atrás de casos que podem ser mais graves.

Passos mostrou profunda imaturidade pessoal e política. Lembrou-me algumas crianças que partem uma jarra e dizem: “Eu não sabia que a jarra estava ali, mas o meu irmão destruiu o jardim por completo! Eu nunca faria isso!”.

Em política, amiúde, as questões não são jurídicas, como esta não é, no essencial. Num país mais respeitador de uma ética política mínima, o próprio PM teria pedido a demissão. Mas este é um país com muitas e particulares idiossincrasias…

Uma outra delas é, também, o silêncio de Costa: táctica política, para não ser acusado de “populismo”, ou ter-se-á o secretário-geral do PS lembrado da parábola bíblica da adúltera que, condenada à lapidação, viu os acusadores saírem um a um, começando pelos mais velhos, neste caso, pelos mais bem colocados nas sondagens?

Os jornalistas incomodam, sobretudo quando surgem “inopinadamente de trás de um carro” e com microfone e câmara nas mãos. Vários deles também servem interesses específicos. Óbvio. Entre isso e a falta de liberdade de imprensa, ainda que essa liberdade seja condicionada por esses “interesses”, ao menos que os jornalistas façam o TPC de assessores incompetentes.

Ser político com responsabilidades governativas não é para qualquer um. E os portugueses não são os papalvos que “comem tudo”. Espero eu. Wishful thinking?

Docente universitário

Sugerir correcção
Ler 4 comentários