"Partido Livre": potencialidades e riscos

Surgiu recentemente a proposta para a criação de um partido para concorrer às eleições. A putativa nova formação, "Partido Livre" (PL), foi já criticada como provável muleta da direita, por vir dividir ainda mais a esquerda, ou como mera rampa de lançamento do eurodeputado Rui Tavares (RT), a sua figura de proa, na sua reeleição para o PE. Creio ser necessária uma análise mais fria, ponderando potencialidades e riscos associados ao dito.

Comecemos pelas virtualidades. Primeiro, uma nova força pode preencher uma lacuna no sistema partidário português do ponto de vista do formato e da natureza do sistema partidário. Por um lado, ao contrário do que as pessoas possam pensar, temos poucos partidos: os dados comparativos revelam que o nosso de nível de fragmentação é baixo. Por outro lado, há pelo menos três famílias partidárias que não estão representadas em Portugal: os "verdes" (pese embora o PEV: nunca se afirmou autonomamente, especialmente na arena eleitoral), os "liberais de esquerda" e a "nova direita radical". Logo, há espaço para um novo partido na área dos "verdes" onde o PL parece querer situar-se. Na Europa, estes partidos combinam geralmente a defesa do ambiente com temas caros à "nova esquerda" (defesa dos direitos das minorias, democracia participativa) mas também à "velha esquerda" (igualização das oportunidades e condições de vida, usando o Estado como instrumento para tal) e aos "liberais de esquerda" (ênfase nos direitos cívicos e nas liberdades).

Segundo, o PL parece querer fazer do diálogo entre as esquerdas um ponto central da sua estratégia. Que há um desequilíbrio estrutural e recorrente no sistema partidário português que o puxa sistematicamente para direita, não há qualquer dúvida: a direita consegue entender-se para governar, a esquerda não. Aliás, perante o Governo mais impopular de sempre, que mais atropelos tem produzido aos princípios básicos de uma democracia representativa e ao Estado social e de direito, a incapacidade das esquerdas em apresentarem uma alternativa conjunta funciona como um seguro de vida do executivo. Mais: na difícil conjuntura nacional e internacional em que vivemos, combinada com uma comunicação social que, maioritariamente, todos os dias pressiona o PS a entendimentos com a direita, e em que os grandes interesses económicos amiúde fazem o mesmo, a probabilidade de uma coligação do PS alinhada à direita, após novas eleições, é elevada. E com um risco acrescido: a pressão para uma revisão da Constituição a contento da direita será fortíssima. Portanto, um partido que seja capaz de se afirmar com estas ideias, e que seja efetivamente capaz de funcionar como um broker entre as esquerdas, pode trazer algo de novo. Tanto mais quanto os desentendimentos entre as esquerdas são sobretudo um problema das elites e não dos eleitores. 

Terceiro, para formar um novo partido é preciso dinheiro: a federação dos verdes europeus pode proporcionar pelo menos uma parte. Quarto, as europeias são favoráveis aos partidos novos: um círculo único que pela sua magnitude permite resultados proporcionais; uma campanha nacional; as pessoas a votarem em maior proporção "com o coração" (i.e., ideologicamente) ou "com os pés" (i.e., em protesto), e em menor proporção "com a cabeça" (i.e., "voto útil"), face ao que fazem nas legislativas.

Mas há também riscos. Primeiro, o PL tem que demonstrar de forma credível e cabal que não é uma mera rampa da reeleição de RT para o PE. É preciso sublinhar que na política democrática há sempre uma conjugação entre o serviço à causa pública, através de um projeto político, e os interesses de carreira dos indivíduos (se não fosse assim só os ricos iriam para a política, como no século XIX). O que não deve acontecer é os interesses de carreira sobreporem-se ao projeto, ao serviço. Neste domínio é necessário fazer prova de que o projeto e o serviço se sobrepõem aos interesses de carreira, seja pela apresentação de uma equipa forte, credível e com projeção (até aqui o PL tem aparecido como um one man show), seja pela afirmação de um horizonte de vida e de ambição que vá claramente além das europeias.

Segundo, apesar da importância das europeias de 2014, em plena crise das dívidas, a verdade é que o nó górdio da política portuguesa, aquele que se relaciona com a questão da governabilidade, se situa no sistema político nacional e passa sobretudo pelas legislativas. Logo, um novo partido que queira afirmar este último ponto como um tema central da sua agenda tem de dar sinais fortes de que o foco central do seu combate serão as próximas legislativas e não as próximas europeias.

Terceiro, a nova força tem que afirmar-se num terreno crescentemente desfavorável aos partidos. Aqui a tarefa não é fácil mas poderá passar por uma forte pedagogia democrática que reafirme o papel crucial dos partidos em democracia e por uma atuação diferenciada (honrar os compromissos eleitorais, aliar competição e cooperação, atuar de forma transparente) que combata as raízes dos sentimentos antipartido.

Finalmente, a vontade de se afirmar como um broker entre as esquerdas não é tarefa fácil. Que o diga o DIM.AR ("Esquerda Democrática") da Grécia, uma cisão do SYRIZA em 2009, e que tinha entre os seus pontos centrais a questão das alianças governativas e o europeísmo: como se sabe, em Junho de 2012 o DIM.AR obteve 6,25% dos votos e 21 lugares (em 300), tendo depois entrado na coligação liderada pela ND (centro-direita) e pelo PASOK (centro-esquerda), de onde acabou de sair no Verão de 2013 aquando do episódio do fecho da TV grega.

Ou seja, é mais fácil defender o entendimento entre as esquerdas do que concretizá-lo e tal pode passar por ter não só os votos suficientes para não ter de negociar em situação de fraqueza, como por ser capaz de levar outros partidos da esquerda radical a aliarem-se com os socialistas, de modo a equilibrar o barco… Resumindo, há potencialidades que o novel PL pode explorar em seu benefício, mas há também riscos. Mas num país onde muitos se queixam do estado da política (e vemos muitos deputados das esquerdas descontentes com o statu quo dos seus partidos, mas poucos têm a generosidade cívica de ir a jogo e de correr riscos, sendo consequentes com o descontentamento que ostentam), gostava de saudar os dirigentes do PL por procurarem ser consequentes e por aceitarem correr os riscos de o ser. 

Politólogo, professor do ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)

Sugerir correcção
Comentar