Palavras para passar o tempo

Não há dia em que não apareçam duas dúzias de iluminados, dispostos a revelar os mistérios da nossa vida.

A televisão, o Komentariado, a internet e os jornais não fazem outra coisa senão discutir o sentido do voto de 4 de Outubro; um governo que aparentemente existe mas não governa; um governo que não existe mas vai governar; o que o Presidente parece ter querido dizer; o que o presidente de certeza não disse; o estado de espírito de António Costa; o que verdadeiramente pensa, ou não pensa, Jerónimo de Sousa; um “pacto” que haverá ou não haverá entre o PS, o Bloco e o PC; a exacta natureza e a “estabilidade” desse pacto; o que por aqui e por ali declaram os “notáveis” partidários; as tradições da democracia indígena; e a aflição da “classe média”. O mais curioso sobre esta polémica apaixonada e febril é que ninguém sabe, nem quer saber, rigorosamente nada sobre o que está a discutir.

Como se pode discutir sobre nada? Por um processo semelhante ao que os romanos usavam  matando bois. Na falta de bois e só com galinhas congeladas, os peritos de agora examinam a “crispação” ou a “descrispação” das personagens políticas, e a frase ocasional que elas deixam escapar; as “manchetes” do Expresso (que são oraculares) e a magreza ou o cansaço dos santinhos da história. A culpa não é dos jornalistas, nem do Komentariado. A culpa é da etiqueta estabelecida para mudar de governo, que não passaria pela cabeça de Luís XIV, e do gosto pelo segredo das “figuras” do Estado e dos partidos, que medem a sua dignidade pelo pouco que revelam ao povo sobre os negócios em que se meteram e nos meteram. Não admira que enxames de portugueses desesperados repitam desesperadamente as mesmas coisas, como se o mundo acabasse agora.

Mas tristezas não pagam dívidas, como Bruxelas nos costuma advertir: e um pouco de ignorância anima a vida e permite a qualquer estúpido perorar sobre o que lhe apetecer. Não há dia em que não apareçam duas dúzias de iluminados, dispostos a revelar os mistérios da nossa vida. É gente que gosta de barulho e não gosta de ideias e que também merece a nossa consideração numa democracia moderna. Claro que o público fica tão confundido como estava, mas também os portugueses tiveram 50 anos de treino de ouvir e calar. A única diferença é que hoje ouvem e respondem e é como se não ouvissem, nem respondessem. O espectáculo, até sem luzes, sempre consola mais. E, no meio da confusão, a PIDE nem sequer lhes bate.

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