Outras polémicas com a bandeira e o hino como pano de fundo

Ao longo dos anos foram várias as controvérsias relacionadas com a bandeira e o hino nacionais.

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O cartoon de João Abel Manta sobre o Festival da Canção é de 1972 DR

São raros os crimes de ultraje aos símbolos nacionais e ainda mais os que acabaram com condenações. Por sinal, um destes últimos nem ocorreu há muitos anos. Foi em Setembro de 2004 e envolveu um jovem que pegou fogo à bandeira nacional, durante uma manifestação antitouradas no Campo Pequeno, em Lisboa. Foi condenado e não se livrou de uma pena de 240 dias de trabalho comunitário.

Na segunda-feira, nas alegações finais do julgamento de Élsio Menau, o defensor do arguido, o advogado Fernando Cabrita, recordou um extenso rol de polémicas mais ou menos célebres relacionadas com os símbolos nacionais. Argumentou que a instalação Portugal Enforcado, de Élsio Menau, foi “um profundo e manifesto acto de cidadania, tão profundo e tão manifesto como o poema Finis Patriae (O Fim da Pátria), de Guerra Junqueiro”. Com idêntico sentido citou Bernardo Passos, a propósito do seu poema Portugal na Cruz – um retrato do estado do país na I República –, e fez também referência ao alerta de Antero de Quental para a “decadência dos povos peninsulares”.

A prevalência do direito à liberdade de expressão e de criação foi ainda ilustrado com o célebre caso do cartoon de João Abel Manta, publicado no suplemento A Mosca do Diário de Lisboa, no qual o escudo da bandeira foi transformado na boca de uma cançonetista, numa paródia ao Festival da Canção. Foi em 1972, durante o marcelismo, e a denúncia partiu do director-geral da Informação (censura). João Abel Manta acabou por ser absolvido no ano seguinte.

Foi defendido de forma corajosa pelo jornalista e advogado José Eduardo Vasconcelos: “O poster tem um sentido que é exactamente o contrário do que a mentalidade censória, inquisitorial, dos acusadores lhe quis dar. O poster é uma defesa da pátria e do seu símbolo, a bandeira, contra aqueles que a usurpam, servindo-se abusivamente dela em manifestações artísticas medíocres ou em certos actos ainda muito mais graves. Mas julgo que os acusadores e os seus chefes têm sobejos motivos para se sentirem atingidos pela crítica acerada de João Abel, pois ela atinge também, em cheio, todos os que vivem ao nível de um país de cançoneta, os que são a imagem viva, na política e na finança, no jornalismo, do cançonetismo mais baixo e que, pior, são capazes de todas as covardias e das maiores infâmias. Deles, porém, ficará apenas a memória da vergonha que foram para uma pátria e um povo que recusa os tiranos e a servidão que lhe querem impor; de um artista como João Abel Manta, ao invés, ficará a memória de um grande artista que desceu à liça e pôs a sua arte ao serviço da luta pela inteligência crítica e pela liberdade.”

Outro caso que acabou na Justiça foi o do actor e encenador João Grosso, que, a 5/12/1987, interpretou uma versão rock do hino nacional no programa juvenil Fisga, da RTP. Algo na mesma linha do que Jimi Hendrix tinha feito com a sua guitarra com o hino americano em 1969, no festival de Woodstock. O actor acabou absolvido, mas o programa foi suspenso e a equipa dispensada.

Os casos de alegados ultrajes aos símbolos nacionais não são exclusivo da intervenção artística. Mário Soares é há muito acusado de ter espezinhado a bandeira nacional num protesto realizado durante uma visita de Marcello Caetano a Londres, facto que o ex-chefe do Estado sempre negou. A acusação regressou da última vez que Soares se recandidatou à Presidência da República, desta vez pela voz de uma mulher que o interpelou em Seia, jurando tê-lo visto pisar a bandeira, mas agora em Espanha – algo que Soares também refutou.

Regressando ao julgamento de Élsio Menau, encontramos mais casos de suposto desrespeito pelos símbolos nacionais evocados por Fernando Cabrita. O advogado insurgiu-se contra o facto de, uma década depois do Euro 2004, as bandeiras que surgiram por todo o lado “continuam, descoradas, esfarrapando-se, amarelecidas, nas ruas de tantas cidades, sem que nenhuma autoridade pareça perturbar-se”. Fernando Cabrita também protestou contra a apropriação da bandeira nacional para fins comerciais, para vender gravatas, botões de punho, canecas, camisolas, tudo. “Até roupa para cães, sem que nenhuma consciência nacional apareça a protestar”, lamentou.

Recordou ainda que, em Fevereiro de 2013, na entrada principal da sede do Conselho Europeu, em Bruxelas, “a bandeira de Portugal ali colocada pelas autoridades tinha pagodes em vez de castelos – e mais uma vez a bandeira foi maltratada sem que daí nada de grave resultasse para quem a maltratou”. Acrescentou que, em Outubro do ano passado, "o próprio primeiro-ministro [Pedro Passos Coelho] não mostrou qualquer pejo nem relutância em discursar no México, tendo como fundo uma bandeira nacional que era uma aberração, adulterada na forma, na cor e nos elementos”.

Outra situação embaraçosa, recordou, ocorreu no 5 de Outubro de 2012, quando o Presidente da República, Cavaco Silva, fez subir no mastro da Câmara de Lisboa a bandeira nacional de cabeça para baixo. Aí, a Câmara de Lisboa assumiu a responsabilidade pelo incidente.

Fernando Cabrita explicou ter enumerado um conjunto situações que permitem concluir que “qualquer indivíduo, qualquer instituição, qualquer actividade se apropria da bandeira, usa-a em prol das suas actividades, promoções, interesses clubísticos, interesses partidários, espectáculos, negócios e festerolas, desvirtuando o simbolismo do estandarte pátrio”. O que fez Élsio Menau, disse advogado aos jornalistas no final da audiência, “foi chamar a atenção do país para o estado em que este se encontra, de forma poderosa e chocante”.

De resto, acrescentou, outras vozes se levantaram no mesmo sentido. “Ainda há pouco tempo ouvi um político, já reformado, que foi muito importante em Portugal – e ainda é –, dizer que ‘estas pessoas’, referindo-se ao actual Governo, puseram este país de rastos”. A representação gráfica desta ideia, sublinhou Francisco Cabrita após a alusão a Soares," seria um país no chão, com as pessoas a passarem por cima dele, espezinhando-o". Élsio Menau, com o Portugal Enforcado, pretendeu exactamente o contrário do que foi acusado, concluiu o advogado: “Que as pessoas se consciencializem do que andam a fazer à bandeira, à soberania e ao país. E que mudem de atitude.”   

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