Os partidos

A relutância dos nossos partidos em se credibilizarem pela abertura é a nossa pior inimiga política.

Há uns meses ouvi a historiadora Luísa Tiago de Oliveira resumir as teses do Congresso da Oposição Democrática de 1973, em Aveiro. O pormenor que mais chamou a minha atenção foi este: nas conclusões daquele encontro, a um ano do fim da ditadura, a existência de partidos políticos foi apenas mencionada uma vez, num parágrafo que também incluía cineclubes e sociedades recreativas.

Mal nos damos conta, mas naqueles primeiros dias de abril de 1973 só havia verdadeiramente um partido assumido como tal no país, e estava ilegalizado: o Partido Comunista Português, fundado em 1921, ainda durante a I República. A União Nacional (que em 1970 mudara o seu nome para "Acção Nacional Popular") fazia na prática o papel de partido único, mas descrevia-se como associação cívica. E só duas semanas depois do Congresso de Aveiro foi fundado o Partido Socialista, no exílio. Os restantes partidos e seus sucessores que temos até hoje nasceram, quase todos, nos meses e anos logo após o 25 de abril de 1974.

Ao contrário de outros países europeus que tiveram ditaduras mas cujos partidos históricos sobreviveram (o SPD na Alemanha, fundado em 1875, o PSOE em Espanha, fundado em 1879), Portugal não tem partidos nem sucessores das suas anteriores tentativas democráticas — com a já referida exceção do PCP.

Isto não foi por acaso. A ditadura foi fundada numa forte retórica antipartidos e antiparlamentarismo. A razão por que a União Nacional era uma "associação cívica" tinha origens na ideia de que os partidos dividiam os portugueses, como Salazar alegava, e que essas divisões tinham provocado as "desordens" da I República.

E também não foi sem consequências. Com a ditadura a durar bem mais do que uma geração, os laços de memória perderam-se e com eles a cultura partidária e parlamentar na grande maioria da população. Talvez por isso em Aveiro, em 1973, o caderno de encargos da oposição democrática se tenha esquecido dos partidos.

Após o 25 de Abril, uma das primeiras coisas que os pais da Constituição tiveram de fazer foi preencher esta lacuna. E fizeram-no bem, nos dois sentidos do advérbio: porque era importante fazê-lo, e porque as decisões tomadas nesse sentido foram na maioria eficazes.

No entanto, ainda vale a pena notar as consequências da reintrodução tardia da cultura partidária em Portugal. Em primeiro lugar, a cultura parlamentar sofreu com isso. Nos países com cultura parlamentar, o partido e os deputados reunidos num grupo parlamentar são realidades conexas, mas distintas: na nossa Assembleia da República, os deputados são uma correia de transmissão dos partidos. E os próprios partidos, por sua vez, são correias de transmissão das suas direções. Quem beneficia disso, é claro, finge que não vê o problema.

O resultado é um tanto esquizofrénico: os portugueses desconfiam dos partidos e são o povo da Europa Ocidental que menos se filia neles; mas os partidos, com os seus defeitos e virtudes, dominam a nossa vida política, administrativa e até jornalística.

Agora que a democracia se começa a aproximar em anos da ditadura, a relutância dos nossos partidos em se credibilizarem pela abertura é a nossa pior inimiga política.

Historiador, cabeça de lista pelo partido Livre às europeias

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