O Verão Quente de 2014

Seguro entrou na cozinha – e agora está disposto a barricar-se nela.

Ainda bem que a troika saiu de Portugal a 17 de Maio e que o relógio do Largo do Caldas já parou de fazer tiquetaque. De outra forma, este novo chumbo do Tribunal Constitucional seria um enorme problema. Onde é que o Governo iria arranjar 800 milhões de euros assim do pé para a mão? Felizmente, nós recuperámos a independência. Estamos em pleno 1640 de 2014. Respira-se uma outra liberdade. Ninguém nos assusta.

Ah, espera, afinal não. Afinal a troika ainda cá está. Afinal só se vai embora no final do mês. Afinal a última tranche de europilim – precisamente 800 milhões, reparem na ironia – ficou de chegar mais tarde e ainda não se sabe bem quando entrará nos cofres do Estado. Afinal, Paulo Portas enganou-se ao acertar o relógio. Afinal ainda estamos em 1639. Afinal, Durão Barroso continua a fazer voz grossa a partir de Bruxelas (é preciso apresentar medidas alternativas “no prazo mais curto possível”, disse ele). Afinal temos mesmo de cumprir o défice de 4% em 2014, ainda que generosamente nos deixem fazê-lo com “medidas menos amigas do crescimento”, também conhecidas em certos lugares como “impostos”. Ups, afinal nada mudou.

Bom, mas não vale a pena desesperar. Felizmente, temos uma oposição legitimada por duas vitórias eleitorais e com um programa alternativo que recusa a austeridade, não é? Temos os deputados socialistas concentrados nos problemas do país, e muito felizes por o novo chumbo do orçamento ser óptimo para Portugal – não esqueçamos que o Palácio Ratton é o principal responsável pela melhoria da economia em 2013. E temos, acima de tudo, Carlos Zorrinho a metralhar incrível pensamento via LIPP – Laboratório de Ideias e Propostas para Portugal.

Ah, espera, afinal não. Afinal o PS está-se nas tintas para o acórdão do Tribunal Constitucional, porque anda entretidíssimo a analisar os estatutos do partido. Afinal, tentar encontrar uma forma de compatibilizar crescimento com austeridade é muito menos interessante do que tentar encontrar uma forma de compatibilizar um secretário-geral com um candidato a primeiro-ministro. Afinal, as mais criativas ideias que António José Seguro encontrou a fazer patinagem na sua caixa craniana eram todas acerca de primárias abertas a simpatizantes e de como isso vai ajudar o país a renovar o seu sistema político e a melhorar a governação. É uma espécie de queijo LIPPiano para consumo interno, uma solução manhosa aprovada à pressa por políticos de quarta categoria, cuja concretização é de tal forma complexa que demoraria meses a efectivar, e cuja única intenção é preservar o poder de Seguro a todo o custo, mesmo que isso signifique arrastar este processo durante meses e ignorar o estado do país.

Daniel Oliveira escreveu um texto no Expresso onde chamava a atenção para a dificuldade de exigir a um homem que abdique facilmente do sonho de uma vida. É verdade que Seguro anda há três anos a lutar para ser primeiro-ministro e foi no momento em que já estava de boca aberta que surgiu António Costa a tirar-lhe o bolo da frente. Mas isso faz parte da crueldade própria da política, e como dizia Harry Truman, se não suportas o calor, então não entres na cozinha.

Só que Seguro entrou na cozinha – e agora está disposto a barricar-se nela. O ano de 2014 vai ter um novo Verão Quente, só que no partido errado. É a filosofia do regime sírio aplicada ao PS: mais vale um partido totalmente arrasado do que arriscar ceder o poder ao adversário.

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