O recuo de António Costa que lhe deu uma vitória

O que estava em causa no braço-de-ferro entre Portugal e a Comissão Europeia era um processo negocial duro, mas longe de ser anormal.

1. Digam o que disserem os dogmáticos da esquerda extrema ou da direita radical, António Costa conseguiu uma vez mais superar o limiar do improvável e salvou-se e salvou o país da humilhação externa nas negociações do orçamento. Fez afinal a “circulatura do quadrado”, na expressão feliz de Bagão Félix. O que o intenso processo negocial da última semana entre o Governo e a Comissão Europeia demonstra sem margens para dúvidas é que o Governo de Portugal jamais cairá no risco de pôr em causa os compromissos europeus e restaurar a memória do Syriza e de Varoufakis de Julho do ano passado. No confronto entre o António Costa que prometeu “virar a página da austeridade” e o António Costa que garantiu aos portugueses cumprir as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, ganhou o segundo. É normal que esta opção irrite os parceiros do Bloco e do PCP, que diriam o pior deste orçamento se por acaso fosse obra do anterior Governo. Como é normal que desgoste os que defendem para o país uma cura drástica de liberalização das leis laborais, cortes salariais e recuo das funções públicas.

Mas, se considerarmos o que estava em jogo, se atentarmos à armadilha de contradições em que o Governo se tinha metido, se pensarmos que no actual contexto político extremado não há soluções óptimas, temos de reconhecer o evidente: que António Costa e Mário Centeno obtiveram do recuo estratégico nas negociações com Bruxelas uma vitória política. Não enterraram a austeridade, mas mudaram-lhe a face; cederam às exigências da Comissão, mas fizeram-no numa base de boa vontade negocial da qual obtiveram resultados – a decisão inédita sobre o limiar do défice estrutural baseada numa regra não escrita é disso testemunho. Equilibraram, cederam, recompuseram, abdicaram de prioridades, escutaram, negociaram e no fim do dia fecharam o assunto com a arte do possível que é a democracia.

Como se escreveu aqui na semana passada, o que estava em causa no braço-de-ferro entre Portugal e a Comissão Europeia era um processo negocial duro, mas longe de ser anormal. Passos Coelho tentou por diversas vezes fazer orçamentos com base em interpretações que mereceram severas críticas de Bruxelas. O simples facto de ter sido obrigado a aprovar oito rectificativos é prova mais do que eloquente de que António Costa não estava a pisar terreno novo nesse jogo de cintura que é a tentativa e erro. O problema desta vez estava mais no contexto do que na substância da primeira proposta de orçamento. Mais do que definir a natureza e o perímetro do défice estrutural, o que estava em questão era saber até que ponto um Governo apoiado pela esquerda extrema podia transformar-se numa ovelha tresmalhada de um rebanho em risco de desagregação – uma cedência a Lisboa daria lastro à pressão de Madrid, de Roma ou de Atenas a favor de um alívio da austeridade.

A partir do momento em que António Costa e Mário Centeno decidiram negociar e mostraram disponibilidade para introduzir na sua proposta novas fontes de receita para equilibrar o exercício, essas dúvidas dissiparam-se. O Governo cumpriu a sua palavra de empenho para com as regras em vigor na União Europeia e, ao fazê-lo, deixou ao eleitorado moderado que preenche o leque partidário entre o CDS e o próprio PS uma mensagem de zelo e de moderação. Mais difícil ainda, fê-lo conseguindo (ao que parece, pelo menos para já) envolver os seus parceiros informais do Bloco e do PCP na sua estratégia. Teve de ceder? Claro que sim, até porque não há negociações sérias sem inflexão de posições. Mas fê-lo com uma mestria política rara. Deu ao PCP e ao Bloco mais impostos sobre a banca, acabou com essa incompreensível benesse aos fundos imobiliários que não pagavam IMI e manteve firmes as garantias de que a sua política de rendimentos via devolução de salários e pensões ou cortes na sobretaxa de IRS não vai ser alterada.

É de resto com posições conciliadoras e com esforços de compreensão do que está em jogo que melhor se pode discutir o lugar onde está o Governo e para onde quer ir. A soberba com que alguns eurodeputados trataram de punir em Estrasburgo os erros de Lisboa é lamentável. Como é lamentável a arrogância dos que se dirigiam aos críticos e aos que duvidavam da estratégia do Governo com acusações de “colaboracionismo”, de ressuscitarem a traição de Miguel de Vasconcelos ou de recriarem uma quinta coluna para corromper a democracia. Uns e outros devem ter presente que a narrativa da semana que acabou exigiu paciência, empenho, avanços e recuos, quebras de compromisso e reversões parciais de promessas eleitorais. É assim a política em democracia.

Mas, o essencial foi salvo. O Governo foi para a mesa das negociações decidido a evitar que Portugal pudesse ser confundido como o novo problema do euro, como um país arrivista e incapaz de assumir compromissos. Costa apagou todos esses receios e para os que acreditam que a moderação ainda é o melhor caminho para resolver os problemas do país, sejam mais à esquerda ou mais à direita, essa só pode ser uma boa notícia.

2. De duas, uma: ou a TAP desmente os números apresentados esta semana sobre as taxas de ocupação dos voos para a Europa que quer agora suprimir, ou Rui Moreira tem razão ao afirmar que está em curso uma campanha da transportadora contra os interesses do Porto. Porque se é verdade que esses voos transportaram 190 mil pessoas no ano passado, se for indesmentível que os seus lugares estavam ocupados sempre acima dos 80%, cai por terra qualquer explicação sensata sobre a sua inviabilidade económica. E, deixando de haver uma justificação de racionalidade económica, torna-se obrigatório admitir que em curso está uma opção estratégica que atenta contra o Porto e o Norte. Acto contínuo, como diz e bem Rui Moreira, agora que a foi parcialmente TAP renacionalizada tem o dever de reverter a decisão. Porque uma companhia nacional não pode sê-lo parcialmente.

Não é a primeira vez que a TAP ensaia soluções desta natureza. Nem é inédito que se empenhe em menosprezar o potencial do principal aeroporto do noroeste peninsular. Em outros tempos, os voos que suprimiu foram de imediato repostos por companhias rivais. Mais recentemente, deu-se ao luxo de, por exemplo, deixar à angolana TAAG uma linha directa entre o Porto e Luanda com taxas de ocupação altíssimas. O que explica esta estratégia persistente é a obsessão com a centralização das operações no hub de Lisboa. Por isso suprime voos e, mais grave ainda para o Porto, por isso desvia os passageiros do mercado galego para a capital colocando à sua disposição voos directos a partir de Vigo. A TAP não percebe, ou não quer perceber, que para uma região exportadora como o Norte ter voos é ter contactos e ter contactos é ter negócios. Não é um capricho, é uma necessidade evidente que uma companhia de bandeira não pode menosprezar.

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