O que não deve ser

Há um peso institucional e uma legitimidade constitucional do Tribunal de Contas no que diz respeito à fiscalização e ao enquadramento da utilização dos dinheiros públicos que não podem ser ignorados, nem devem ser desrespeitados.

A gestão do projecto de construção de linhas de comboios de alta velocidade (TGV) criticada e condenada pelo Tribunal de Contas (TdC) é um exemplo lapidar do que não deve ser o utilizar dos dinheiros públicos: o relatório do TdC divulgado na segunda-feira pela agência Lusa mostra como a gestão da coisa pública pode viver paredes meias com o desperdício, o esbulho e pode até abrir a porta a potenciais situações de corrupção.

Comecemos pelos factos. O projecto do TGV existia desde 1988 e foi abandonado pelo Governo de Passos Coelho depois de o TdC ter chumbado o contrato para o que seria a construção do primeiro troço que ligava o Poceirão a Caia, que foi assinado em 2010, ainda sob o Governo de José Sócrates entre a Rave, empresa estatal criada para gerir o projecto do TGV, e o consórcio Elos – uma anulação de contrato que poderá levar o Estado português a ter de satisfazer três pedidos de indemnização no total de 29,4 milhões de euros.

Durante uma dúzia de anos (2000-2012), a Rave geriu o projecto do TGV, recorrendo parcialmente a fundos europeus, encomendou estudos e mais estudos, alimentando um sonho, mas também a máquina de organização da própria empresa. De acordo com o relatório do TdC, foi despendido pelo Estado neste projecto um total de quase 153 milhões, a saber: “120 milhões de euros em contratação externa, ao longo de cerca de 12 anos de estudos, e 32,9 milhões de euros despendidos em custos de estrutura da Rave.” Ao que acrescerá ainda, repita-se, as eventuais indemnizações acima citadas.

O carácter paradigmático de como a gestão do TGV é um mau exemplo para a administração dos interesses públicos é salientado pelas conclusões da auditoria do TdC. “A análise do projecto de alta velocidade permite identificar, com utilidade para a gestão de futuros projectos públicos de investimento, diversas fragilidades de planeamento e de avaliação de riscos que concorreram para a ausência de contratos em execução”, aconselha o Tribunal de Contas.

São várias as deficiências encontradas pelo TdC. Optou-se por um modelo de criação da rede de alta velocidade “sem paralelo em termos internacionais”, o qual se baseava na celebração de seis contratos de parceria público-privada (PPP) cujos encargos para o Estado atingiriam um total de 11,6 mil milhões de euros.

O TdC critica o Estado por ter avançado para um projecto desta envergadura “sem a utilização do que habitualmente se designa por projecto-piloto” e com “excesso de optimismo”. E aponta ainda o TdC que “os riscos de procura relevantes recairiam sobre a CP e a Refer, empresas públicas economicamente deficitárias, e, em contrapartida, os pagamentos pela disponibilidade da infra-estrutura às concessionárias gozariam de estabilidade, característica típica das rendas”. Além disso, não estava garantida a rentabilidade da exploração do projecto.

Indo mais longe, o TdC afirma mesmo que “os estudos preliminares demonstraram que o investimento na rede ferroviária de alta velocidade não apresentava viabilidade financeira”. E sentencia que “não há evidências de que os benefícios ultrapassariam os custos com a rede ferroviária de alta velocidade”.

É certo que alguns antigos responsáveis pelo projecto têm tentado desacreditar o relatório do Tribunal de Contas e alegar que até existia um documento que fazia a defesa do projecto, mas que nunca foi enviado ao TdC pela Refer, após a extinção da Rave (PÚBLICO de 06/01/2015). Assim como foi noticiado que os estudos feitos para o TGV ao longo de anos e com dinheiros públicos desapareceram do site da Refer, onde estavam colocados para a consulta pública a que a lei obriga (PÚBLICO de 06/01/2015).

Mas nada do que seja o ruído que possa ser feito em torno deste assunto, nem a realidade de que há documentos e preceitos legais que têm de ser respeitados anula a importância das conclusões da auditoria do TdC. Há mesmo um peso institucional e uma legitimidade constitucional do TdC no que diz respeito à fiscalização e ao enquadramento da utilização dos dinheiros públicos que não podem ser ignorados, nem devem ser desrespeitados.

É por isso fundamental que a posição agora divulgada pelo TdC seja difundida e interiorizada pelos serviços de Estado e empresas públicas, bem como pelos partidos políticos que são fornecedores de ocupantes de cargos públicos e políticos na administração pública e nas empresas estatais. É necessário que em Portugal faça escola a clarificação do que deve ser uma ajuizada administração do erário público que tenha em conta o interesse público e não o interesse privado. E que não permita o esbanjar que delapida o erário público, nem facilitismos no uso de dinheiros do Estado que potenciem a corrupção.

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