O PS e a esquerda (I)

Eu sou dos que estou convencido que o PS não governará à esquerda depois de 2015. Não porque seja Costa o candidato. Simplesmente porque nunca governou à esquerda.

“Não é possível ser alternativa às atuais políticas [e] querer prosseguir as atuais políticas”. Pode parecer, mas não: a frase não aparece num comunicado do PCP ou do Bloco, ela foi mesmo dita por António Costa no Congresso do PS. Significa isto que o PS vai mesmo virar à esquerda? É agora?

Na ausência muito provável de uma maioria absoluta, veremos Costa, que gosta tanto de coligações, que avisa já que “não podemos viver numa situação de instabilidade ou paralisada por divergências” dentro delas, a propor negociações ao PCP e ao BE, os tais que vivem “na posição cómoda do protesto e não trabalham para a solução” (PÚBLICO, 30.11.2014)? Ou de tudo isto sairá apenas um convite a Rui Tavares para uma secretaria de Estado, ou um Ministério da Justiça oferecido a um ulceroso Marinho e Pinto? Fora do PS (e do Livre) ninguém acredita na primeira hipótese: a direita finge-se chocada com a “radicalização” à esquerda do PS, mas até Teresa Leal Coelho (PSD) percebeu que a viragem do PS à esquerda é um “taticismo” de António Costa que durará pouco (Sol, 5.12.2014). Comunistas e bloquistas continuam a mostrar-se céticos. Um observador insuspeito como Paulo Guinote recomenda “a todos aqueles que auguram um PS virado a alianças à esquerda pela primeira vez na sua história” que “[esperem] sentados e [tomem] desde já um antidepressivo dos fortes, tamanho vai ser o rebound” (blogue A educação do meu umbigo, 4.12.2014).

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Um socialista, pelo menos, quis levar a sério o discurso de António Costa. Francisco Assis, que “advoga a vantagem de um entendimento político de fundo com formações de centro-direita”, queixou-se nas páginas do PÚBLICO de lhe terem “[imputado] arbitrariamente uma pérfida intenção, [deturpado] deliberadamente os [meus] propósitos e [promovido] um juízo definitivo visando a [minha] absoluta desqualificação moral e política”. Assis conhece bem de mais os seus camaradas socialistas para saber que exagerou. Eu, pelo menos, que o conheci há quase 30 anos nos nossos tempos de faculdade – ele em Filosofia, eu em História; eu no movimento estudantil que defrontava o cavaquismo arrogante dos anos 80, ele, já então, longe de tudo isso, discretíssimo numa JS que, fora de Coimbra, nem se percebia existir , permito-me duvidar que ele não saiba que não há ninguém na nova direção do PS interessado em acabar com 40 anos de pragmatismo político, de “socialismo” e de “Estado social” metido na gaveta e de navegação à vista, e assumir uma aproximação ao que ele chama a “esquerda proclamatória”. Eu sou dos que percebeu há muito – e digo-o, honestamente, sem nenhuma ironia – que Assis não foge a “pureza” alguma da esquerda onde ele acha estar quando diz terem sido “raras as ocasiões em que a esquerda democrática e liberal” (é assim que ele se define) “esteve mais próxima da extrema-esquerda [de inspiração bolivariana]” (é isto que ele acha ser o PCP e o BE, não sei se o próprio Livre) “do que de uma certa direita liberal e republicana” (que suponho ser o que ele vê no PSD). Há muito que manifesta uma repulsa genuína pelo que chama os “neocomunistas”, designação que, no discurso de Assis, abarca muito mais do que os militantes dos PC's deste mundo, e inclui todos os que encontrem no marxismo instrumentos de análise da realidade.

Também aqui ele não se diferencia do que foi a atitude histórica do PS desde 1974, que à sua esquerda viu permanentemente sindicatos e partidos “antidemocráticos”, que tantas vezes garantiu estarem ao serviço de “potências estrangeiras”, com os quais era impossível (pelo menos até Sampaio-Lisboa-1989) chegar sequer a acordos pontuais. É por isso que toda esta conversa da “esquerda inútil” e que “não trabalha para a solução” e que me desculpe o meu colega André Freire – é uma boutade dos últimos 20 anos: até então, o PS disse sempre que quase tudo à sua esquerda era gente infrequentável. Nos anos 90, com Guterres, o PS passou a agregar quase 80% dos votos da esquerda, e roçou sempre a maioria absoluta (ver tabela). À sua esquerda, reuniam-se apenas 10% dos eleitores – metade dos que houvera até 1987. Desde 2005, contudo, que entre 800 mil e um milhão de portugueses votam sempre à esquerda do PS, numa proporção de um para dois. E têm fortes motivos para o fazer. E é isso que preocupa António Costa. Ao contrário do que se pretende fazer crer, esse bloco social à esquerda tendeu a recuperar neste século um peso que já fora seu nos anos 70. Por outras palavras, nos anos de Sócrates (querem líder socialista mais incompatível com viragens à esquerda?), o PS governou à direita e desiludiu à esquerda. Já nos anos 80, o Bloco Central de Soares fizera o mesmo e abriu caminho ao PRD e à candidatura de Zenha à Presidência, com o apoio do PCP, o que retirou ao PS a maioria dos eleitores da esquerda.

Eu sou dos que estou convencido que o PS não governará à esquerda depois de 2015. Não porque seja Costa o candidato. Simplesmente porque nunca governou à esquerda. A única forma de conseguir por via eleitoral um governo à esquerda passa por inverter a correlação de forças entre o PS e os partidos à sua esquerda – isto é, que o conjunto de votos da CDU e do BE supere claramente os do PS e o obrigue, como sucedeu na Grécia e brevemente sucederá em Espanha, a escolher assumidamente entre uma coligação com a direita (como fez o PASOK – e foi o fim de qualquer ilusão) ou uma coligação a sério (e não uma simples cooptaçãozinha de pesca à linha) com quem, na esquerda a sério, coloca as opções difíceis mas fundamentais entre austeridade e democracia social, entre Tratado Orçamental e soberania dos portugueses, entre submissão cega a uma dívida ilegítima e cheia de juros usurários e a recuperação de uma vida com um mínimo de dignidade.

Como tentarei demonstrar na minha próxima crónica, a história de 16 anos de governos socialistas mostram que o PS no poder fez quase sempre as escolhas contrárias aos interesses da maioria de quem nele votou, descrevendo-as, contudo, como inevitáveis para depois, quando passou à oposição, procurar voltar a dar esperança a muitos eleitores. Até à desilusão seguinte.

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