O Presidente da República: moderador, árbitro ou contrapoder

A propósito do encerramento da Cornocópia e o modo como o Presidente Marcelo apareceu na despedida do teatro, mereceu algumas críticas, no sentido de que tal conduta constituiu uma ingerência no poder executivo. Mas, já anteriormente apareceram, aqui e ali, críticas a outras iniciativas. Ao caso da Cornocópia, o presidente Marcel respondeu que só cumpre a Constituição, o que não é de esperar outra coisa, uma vez que é um Prof. de Direito e um constitucionalista.

 Segundo a teoria de separação de poderes, para que num Estado exista liberdade política é preciso que os três poderes (legislativo, executivo e judicial) não estejam reunidos nas mesmas mãos e que se repartam por órgãos diferentes de maneira que, sem nenhum usurpar as funções dos outros, possa cada qual impedir que os restantes exorbitem da sua esfera própria de acção.

 Ao longo dos tempos, a teoria da separação de poderes sofreu algumas correções, sendo a mais importante a introduzida por Benjamin Constant, célebre escritor suíço, naturalizado francês, defendendo que, sendo os três poderes referidos por Montesquieu independentes, a acção deles não pode todavia deixar de se caracterizar pela cooperação e pela harmonia. Ora, isso só poderá conseguir-se desde que exista uma força que previna e resolva os conflitos entre eles, harmonizando-os quando desavindos. E essa força não pode ser a de nenhum desses três poderes porque, nesse caso, o que a tivesse subordinaria ou destruiria os outros. Logo há que admitir um quarto poder, imparcial, com autoridade para intervir oportunamente, mediante uma ação preservadora e reguladora, despida de qualquer hostilidade.

Este poder moderador, num regime semipresidencialista, como é o nosso, cabe naturalmente ao Presidente da República (PR), mas não lhe cabe actuar como  contrapoder.

 O conceito de árbitro, embora mais adequado ao léxico jurídico e jurisdicional do que ao político, enquadra-se também ele nas funções presidenciais, na medida em que, além de moderador, o PR poderá ser chamado, em determinadas circunstâncias, a resolver, com imparcialidade, questões importantes da vida política. Mas, a doutrina acrescenta uma outra função ao PR, não menos importante: o magistério de influência.

A dimensão representativa do órgão presidencial, no plano interno, aponta, segundo os nossos constitucionalistas, “para a sua função de integração e unidade, características que se manifestam, essencialmente, na solidariedade institucional com os vários orgãos do Estado, no direito de contacto e consulta com as forças politicamente atuantes da sociedade (partidos, organizações, grupos sociais e  cidadãos, etc.).

Estando acima dos partidos e como “guardião da Constituição”, como aliás exige a função presidencial, o Presidente da República não pode manifestar-se como presidente de facção. O baixo índice de popularidade de Cavaco Silva deveu-se muito a esta característica, causadora, além do seu próprio desprestígio, de um efeito banalizador da instituição, que está agora a ser restaurado pelo Presidente Marcelo.

Mas, a presidência de Cavaco Silva manifestou-se também em outros âmbitos constitucionais. Na verdade, nos poderes próprios e partilhados, são importantes, na estrutura constitucional, os poderes de controlo (vg. promulgação das leis, veto por inconstitucionalidade e político), justificados, juridicamente, pela obrigação de cumprir e fazer cumprir a lei constitucional.

Em alguns casos, Cavaco Silva agravou as limitações resultantes do regime semipresidencialista, fazendo uma interpretação demasiado restritiva da Constituição, acompanhada, por vezes, por falta de coragem para usar o veto politico em leis com as quais não concordava. Por isso, o seu poder moderador e garante do regular funcionamento das instituições democráticas nem sempre foi exercido convenientemente, criando a convicção nos portugueses de que o cargo de Presidente da República é uma irrelevância no quadro constitucional. Do exposto, é de concluir que a designação caracterizadora da função presidencial, face à nossa Constituição, é, sem dúvida, a de moderador e árbitro, excluindo-se, liminarmente, a de contrapoder.

O Presidente Marcelo tem exercido, com admirável êxito, o seu magistério de influência, não só através da palavra, mas, essencialmente, através da sua conduta, “arriscando-se” a ser o melhor Presidente da República Portuguesa.

Juiz desembargador Jubilado

 

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