O óbvio

Quando surgir enfim o dia claro, em que toda a gente comece a ver o óbvio, não terei certamente lugar nos jornais.

Eu sou um frequentador — e um apreciador — das caixas de comentários dos meus textos, o que só se justifica por uma mistura de masoquismo e vaidade.

Por um lado, admiro quem se dá ao trabalho de reflectir sobre o que escrevo, por outro, tenho sempre à minha disposição um vasto leque de críticas e de insultos, sempre úteis para testar argumentos e domesticar o ego. Após a publicação do meu último texto  A realidade é de direita , houve uma crítica que me tocou particularmente, não tanto pelo seu acinte mas pela sua exactidão. Um leitor afirmou no site deste jornal que eu era uma “criança de jardim-de-infância”, que gasta o seu tempo a escrever “banalidades sem qualquer valor intelectual” e a “dizer numa coluna do Público o que qualquer idiota de café é capaz de dizer”.

Este leitor está certíssimo. Eu próprio me interroguei, durante muitos anos, porque continuava a escrever nos jornais quando as minhas opiniões eram absolutamente óbvias, destituídas de qualquer sofisticação ou originalidade particular, sendo basicamente compostas, como muito bem viu o leitor, por um conjunto de banalidades sem valor intelectual que qualquer idiota de café é capaz de produzir. Assaltado durante imenso tempo por tal dúvida, acabei por encontrar uma resposta apaziguadora e clarificadora num texto que George Orwell publicou em 1946, intitulado In Front of Your Nose, que me parece muito útil citar aqui.

Escreveu Orwell: “Na sua vida pessoal, a maior parte das pessoas é bastante realista. Quando se está a planear o orçamento semanal, dois mais dois são invariavelmente quatro. A política, pelo contrário, é uma espécie de mundo subatómico ou não-euclidiano, onde é bastante fácil a parte ser maior do que o todo ou dois objectos estarem em simultâneo no mesmo local. Daí os absurdos e as contradições que ocorrem, e que em última análise se justificam pela secreta convicção de que as opiniões políticas de cada um, ao contrário do orçamento semanal, nunca terão de ser testadas contra a sólida realidade.”

Foi a partir desta premissa que George Orwell cunhou, nesse mesmo texto, uma das suas frases mais populares: “To see what is in front of one’s nose needs a constant struggle.” Em português: “É preciso uma luta constante para vermos o que está em frente do nosso nariz.” Ora, se não há dúvida de que eu só escrevo sobre o que está em frente do meu nariz, vocês não imaginam a quantidade de gente que tem uma enorme dificuldade em lidar com os seus narizes. Embora os cafés portugueses estejam, de facto, cheios de idiotas, como notou o leitor e muito bem, a triste verdade é que eles não passam o tempo todo a dizer o óbvio os idiotas portugueses passam o tempo todo a negar o óbvio.

Se a política em Portugal fosse utilizada para discutir em detalhe as reformas que são necessárias para o país progredir, eu estava tramado. Não sei o suficiente sobre isso. Só que em Portugal a política serve para discutir se essas reformas são mesmo necessárias e isso é tão óbvio, que eu safo-me. Se a política servisse para mudar a realidade que existe, eu estava tramado. Mas como ela serve para discutir a existência da realidade, isso é tão óbvio, que eu desenrasco. Quando surgir enfim o dia claro, em que toda a gente comece a ver o óbvio, não terei certamente lugar nos jornais. Só que convém esperar sentado: 70 anos depois de In Front of Your Nose ainda há imensas pessoas que continuam a não vislumbrar o frontispício da sua penca. E o azar delas é a minha sorte.

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