O livro sem qualidades

... uma conversa privada entre dois machos portugueses pouco evoluídos...

A polémica que se estabeleceu à volta do livro Eu e os Políticos de José António Saraiva quase não permite uma reflexão serena sobre o seu conteúdo.

Quem não considere o livro uma obra criminosa e abjecta, é uma pessoa criminosa e abjecta que escolheu o seu campo numa batalha em que estão claramente demarcados o Bem e o Mal, qual guerra entre os aliados e o nazismo. De um lado a privacidade, a intimidade e a decência, do outro o mais ignóbil voyeurismo, a sociedade-espectáculo e a total ausência de valores e regras.

Não consigo analisar o livro e o acto da sua publicação nestes termos. São 42 mini-capítulos, um por pessoa, em que o autor se diverte, de uma forma mais ou menos perversa, a revelar confidências que lhe foram feitas, na sua qualidade de jornalista e não de pessoa de confiança, segundo afirma, e que, em geral, têm pouco interesse e que nunca farão parte da história.

Há uma ou outra revelação interessante ou relevante, como por exemplo, o facto de Cavaco Silva, ao fazer os convites para integrarem o seu governo, não indicar inicialmente a pasta que tinha em mente, de forma a, no caso de recusa, os convidados não poderem dizer o que tinham recusado, não havendo, assim, ministros de segunda escolha; mas, na sua maioria são fait-divers absolutamente irrelevantes e que, aqueles que tiveram essas conversas agora reveladas, após as lerem, provavelmente pensarão que o “arquitecto-jornalista” não vale grande coisa mas não pensarão muito mais no assunto.

Muitos dos textos publicados demonstram, de uma forma triste ou ridícula, a alta consideração que o autor do livro tem de si mesmo, numa espécie de megalomania soft que passa por afirmar, com exemplos vários, a sua enorme intuição e capacidade de premonição bem como uma espécie de sabedoria asiática fria e distante de quem é um mero observador das conversas em que participa mesmo que o outro esteja convencido que está a falar com um ser humano como ele. Por vezes, parece encontrar-se em alguns textos uma espécie de ajuste de contas com a história presente, assumindo o autor uma certa coragem ou temeridade no que afirma.

O estilo é o mesmo que caracterizava os seus textos, seja no Expresso seja no Sol. Confesso que não me entusiasma. Nunca li nada que achasse particularmente criativo e sempre achei – sobretudo no Sol com inúmeras historinhas banais da sua vida – padecerem de um enorme umbigo, resultante do que me parece ser uma espécie de autismo ou bloqueio emocional e afectivo semi-voluntário.

É a minha opinião, claro. Há outras: José António Saraiva, num dos mini-capítulos, revela que no dia 3 de Março de 2016 se deslocou a Belém para se despedir de Cavaco Silva enquanto presidente da República e que este lhe disse que Maria Cavaco Silva era sua leitora há vários anos, acrescentando: “A minha mulher não se interessa muito por política, mas o senhor é dos poucos comentadores que ela lê. Porque percebe o que o senhor escreve. E é ela que me lembra sempre para ler a página 2 do Sol”.

Mas para além do estilo e do conteúdo, em geral irrelevante, do livro, há algumas partes do mesmo que, independentemente da sua qualidade de jornalista, levantam problemas graves quanto ao respeito que é devido à privacidade e à intimidade da vida das pessoas. Estas partes do livro, referentes a meia-dúzia de pessoas, tornam-se difíceis de analisar sem falar das pessoas ou daquilo que é dito e, sinceramente, parece-me mais decente não me espraiar em citações ou exemplificações.

Não estou a falar, por exemplo, de uma história absolutamente irrelevante que já vi relatada de uma forma deturpada. Conta José António Saraiva que um escritor já falecido lhe contou que um qualquer ministro numa qualquer viagem ao estrangeiro lhe dissera o seguinte: “Quando se viaja com mulher, gasta-se mais e fode-se menos”. Como é evidente, esta frase nada nos diz sobre as fidelidades ou infidelidades do ministro em causa já que mais não é do que uma boutade ou bravata machista, pouco abonatória mas absolutamente normal numa conversa privada entre dois machos portugueses com mais de 50 anos e pouco evoluídos.

As questões sérias que se colocam têm a ver com a divulgação, para milhares de pessoas, de alguns factos absolutamente privados e íntimos de algumas pessoas, parte delas sem qualquer relevância política, não se percebendo minimamente qual a razão da sua publicação. Não se percebe qual o valor que contrapôs ao respeito pela intimidade da vida privada para os publicar. Referir posteriormente em entrevista como justificação para a divulgação desses factos da vida íntima de pessoas “...um clima um pouco deslaçado que se viveu num determinado momento da nossa história, com um tom leviano ligeiro”, é, pelo menos, excessivamente leviano e perversamente moralista.

Ou ainda, um outro caso desta sinistra falta de pudor: é difícil ou mesmo impossível, ver qualquer interesse público no conhecimento dos estados de alma de uma pessoa desesperada e perdida que não ocupava qualquer lugar de relevo político. Sobretudo por serem revelados, não por um historiador ou um investigador, mas por alguém a quem essa pessoa – que, ainda por cima, já morreu – se confiou, a quem abriu a sua alma, mesmo que José António Saraiva reafirme uma permanente reserva mental na sua relação com os seres humanos. É um texto, no mínimo, profundamente chocante e lamentável. E, parece-me, mesmo amoral ou perverso em diversos sentidos. Não me debruço em pormenor sobre os episódios íntimos que revela porque estaria a exceder-me desnecessariamente publicitando o que entendo não o dever ser.

Não consigo, pois, dividir o mundo em criminosos abjectos de um lado e guardiães do templo do outro a propósito do livro Eu e os Políticos. Claro que é possível considerar que todo o livro está contaminado, porque contém meia dúzia de histórias violadoras da reserva da vida privada, pelo que é um completo asco e uma abjecção total. É possível optar por aí e muito provavelmente, se fosse um dos visados, era assim que o classificaria. Como se matassem uma pessoa que me fosse particularmente querida, a minha vontade. Embora seja contra a pena de morte, seria matar quem o fizesse.

Mas parece-me que o livro é tão-somente uma obra sem qualidades com inconfidências diversas, a maior parte irrelevantes e algumas violando a privacidade de terceiros em termos inaceitáveis. Para mim, é isto.

Advogado, francisco@teixeiradamota.pt

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