O início de uma longa história...

Está criada uma fractura social que se vai aprofundar.

O processo-crime que determinou a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro José Sócrates e de mais dois arguidos vai dividir profundamente a sociedade portuguesa ao longo dos próximos meses e, mesmo, anos. Não creio que seja uma questão de regime e que estejam abalados os fundamentos da nossa democracia, embora confesse que, quando vejo o presidente do Governo Regional da Madeira a clamar pela violação dos Direitos Humanos, não posso deixar de ficar preocupado...

Muitos portugueses já condenaram ou absolveram o ex-primeiro-ministro. Definitivamente. Independentemente de haver uma acusação ou não, de ser pronunciado e levado a julgamento ou não e do resultado do julgamento, o ex-primeiro-ministro goza junto da opinião pública de arreigadas presunções de inocência e de culpabilidade. 

Esta é uma fractura social – a que não é alheia a actuação do próprio com a sua postura de “animal feroz” – que fatalmente nos acompanhará nos próximos anos. Mesmo que venha a ser condenado e depois de esgotadas todas as possibilidades de recurso, haverá, seguramente, muita gente que estará convicta – desde já de que nos encontraremos perante um enorme erro judiciário, quiçá a falência do sistema. E, caso venha a ser absolvido, haverá também muita gente para quem tal absolvição, será – desde já a prova da inoperância do nossa sistema judicial, tal a convicção de culpabilidade de que estarão imbuídos.

E, na verdade, a verdade judicial não é uma verdade absoluta. Pessoalmente, por exemplo, estou convicto de que o futebolista e actor O. J. Simpson, que foi julgado com acompanhamento televisivo, ao longo de oito meses, nos anos 90, pela morte da sua mulher, Nicole Simpson, e foi absolvido, era culpado. A verdade ditada pelo tribunal naquele que foi considerado o “julgamento do século” é, para mim, uma mentira.

Como é, para mim, uma mentira a inexistência de corrupção no “processo dos submarinos” que terminou em Fevereiro do corrente ano com a absolvição de todos os arguidos, três alemães e sete portugueses. Não sei se os culpados estavam entre os arguidos ou não, mas estou – e provavelmente não estarei sozinho absolutamente convicto de que no processo da compra dos submarinos houve corrupção, pagamento de luvas ou comissões indevidas, embora não saiba, naturalmente, a quem.

Seguros, como todos estaremos, da natureza fatalmente relativa da verdade decretada pelos tribunais, bom seria que o sistema judicial cuidasse de se credibilizar, actuando de uma forma tão transparente e coerente quanto possível. E, neste início, em termos públicos, do “processo Sócrates”, há desde já dois acontecimentos lamentáveis.

O primeiro foi o facto de a detenção do ex-primeiro-ministro por membros da Autoridade Tributária e Aduaneira – um serviço do Estado ligado ao Ministério das Finanças – e da PSP ter sido comunicada previamente a órgãos de comunicação social, de forma a permitir que os mesmos estivessem à sua espera no aeroporto. O que é grave, não por parte dos órgãos de comunicação social, que, sabendo do facto, não o podiam ignorar, mas por parte de quem estava obrigado a guardar o segredo.

Por outro lado, o tribunal central de instrução criminal, ao não ter comunicado publicamente as razões que determinavam a prisão preventiva de três dos arguidos, prestou um mau serviço aos portugueses, na altura “suspensos” dessa decisão e que, naturalmente, gostariam de ter sido um pouco mais esclarecidos.

Nada de muito grave, e, a partir de agora, pelo menos, já sabemos que estarão em causa fortes indícios da prática dos crimes de corrupção, fraude fiscal agravada e branqueamento de capitais. Matérias sobre as quais os portugueses, dentro de pouco tempo, serão especialistas.

Sobre este último crime, o de branqueamento de capitais, importa esclarecer que só poderá dar-se como provada a sua existência desde que se prove a existência anterior de qualquer dos outros dois crimes. Só é possível “lavar” dinheiro se o mesmo for dinheiro “sujo”, isto é, produto de actividades ilegais, pelo que sempre será necessário provar em tribunal a origem ilegal do dinheiro alegadamente “branqueado”. Estejam em causa dez euros ou dez milhões de euros.

Como todos sabemos, não existe o crime de enriquecimento ilícito no nosso país a louvável e meritória tentativa da ministra da Justiça de o criar foi chumbada pelo Tribunal Constitucional. No nosso país, ninguém está obrigado a provar que o dinheiro que possui tem uma origem legal. Por mais chocante que seja a distância entre aquilo que devia ter e aquilo que efectivamente tem. A expressão “quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem” não tem, pois, tradução legal em termos de consequências penais no nosso país. Os portugueses – pró e contra José Sócrates – vão, todos, nos próximos tempos, estudar muito Direito Criminal.


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