O império dos comentadores onde quem manda são os políticos

A crise trouxe dúvidas novas sobre a situação do país e a actuação dos políticos. As televisões portuguesas responderam com muitos comentadores, mas quase todos políticos, no activo ou com funções suspensas.

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Se aos quatro canais generalistas se juntarem os canais de informação portugueses no cabo (RTP Informação, SIC Notícias e TVI24), é possível assistir a 69 horas de comentário político por semana. O equivalente a quase três dias completos em frente à televisão. Marcelo Rebelo de Sousa, José Sócrates e Marques Mendes são alguns dos rostos mais conhecidos de uma lista de, pelo menos, 97 comentadores com presença semanal na televisão portuguesa. Destes, 60 são, ou já foram, políticos.

As motivações para estes políticos se dedicarem à televisão não estará só na exposição mediática. Financeiramente, a actividade parece ser lucrativa. Rebelo de Sousa, líder nas audiências entre todos os comentadores, confirmou ao Correio da Manhã receber dez mil euros por mês pelo seu comentário semanal na TVI. Marques Mendes, antes de sair da TVI24, terá recusado uma oferta de sete mil euros e, alegadamente, ter-se-á transferido para a SIC por ter recebido uma proposta melhor, segundo noticiou a CorreioTv em Março.

José Sócrates, apesar de ter afirmado publicamente que não iria auferir nenhum tipo de remuneração pelo comentário, terá, segundo a mesma publicação, as despesas de deslocação entre Paris e Lisboa pagas pela RTP. Por seu lado, a antiga ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite, alegadamente terá um ordenado que ronda os cinco mil euros pelo espaço de comentário semanal que tem na TVI24.

Se se comparar a distribuição das "camisolas" dos comentadores com a representação dos partidos no Parlamento, a diferença não é muita. Em primeiro lugar surgem os comentadores ligados ao PSD - o partido com mais figuras na TV -, seguidos pelos do PS e, no último lugar do pódio, os comentadores do CDS-PP. A única diferença entre ecrãs e Assembleia da República é na proporção entre bloquistas e comunistas: no Parlamento há mais deputados do PCP, na televisão mais comentadores ligados ao BE.

O politólogo José Adelino Maltez caracteriza este "grupo muito específico" como "políticos que fazem intervenção política chamando-lhe comentário". O director de informação da SIC, Alcides Vieira, contra-argumenta que a maior parte dos comentadores são políticos que já não estão no activo, não sendo assim "porta-vozes dos partidos".

Por seu lado, Felisbela Lopes, professora e investigadora de Comunicação na Universidade do Minho, vinca um outro ponto: a pouca rotatividade dos comentadores. Ironizando que na "confraria dos convidados o que custa é chegar a confrade".

"O nosso sistema político e partidário criou esta função do ex-político no activo que é comentador", afirma o antigo director da RTP2 Manuel Falcão. Por isso, acrescenta, o facto de haver políticos que vão todas as semanas às televisões comentar outros políticos tornou-se normal.

O predomínio de políticos comentadores na televisão portuguesa é um fenómeno "relativamente singular nas democracias da Europa ocidental", sustenta o politólogo e historiador António Costa Pinto.

Como possíveis justificações para esta particularidade, a investigadora de Comunicação Política e especialista no tema em análise, Rita Figueiras, avança duas hipóteses: por um lado, o facto de Portugal ter uma democracia ainda recente; por outro, e como consequência, "por o jornalismo ter estado muitos anos sob a alçada do poder político".

De qualquer forma, Rita Figueiras vinca que a presença de políticos comentadores é uma aposta ganha para as televisões, defendendo que "os media sabem que resulta a nível de audiências".

No entanto, o director de Informação da RTP, Paulo Ferreira, recusa-se a "transformar as audiências dos comentadores num concurso". E acrescenta que o mais importante é que os comentadores tenham uma opinião "que marque a agenda".

Esta capacidade determina muitas vezes a escolha dos comentadores, mas a capacidade de dar notícias em primeira mão é apenas um dos muitos "pré-requisitos" para chegar aos palcos televisivos. Marques Mendes tem sido um exemplo do comentador que faz manchetes, revelando notícias que os jornalistas da própria estação - antes a TVI24, agora a SIC - desconhecem.

O director da SIC Notícias, António José Teixeira, revela algumas das características que considera essenciais para se ser comentador. "Escolhemos pessoas livres que estejam em condições de pensar pela própria cabeça e que não sejam apenas correias de transmissão dos partidos."

Paulo Ferreira acrescenta a necessária facilidade de comunicar em televisão e transmitir um pensamento de forma estruturada. O director de informação da RTP destaca ainda a "capacidade analítica e opinativa" e o "conhecimento do processo político" que os comentadores precisam de ter para chegar aos ecrãs.

Habituado a tratar da imagem de políticos e de assessorar campanhas eleitorais, António Cunha Vaz, dono da agência de comunicação Cunha Vaz & Associados, considera que os políticos têm uma mais-valia enquanto comentadores "porque sabem do que estão a falar". Desvaloriza as recentes polémicas em torno dos políticos escolhidos pelas televisões, referindo-se à contratação de José Sócrates pela RTP, e defende que "as direcções de Informação devem ser livres de escolher quem querem para comentar".

Na sua maioria formados em Direito, os políticos comentadores têm em média entre 45 e 60 anos, havendo um equilíbrio entre políticos no activo e ex-políticos. De todos, o mais novo é João Ferreira, eurodeputado, com 34 anos, e o mais velho Medina Carreira, com 81 anos.

António Costa Pinto realça que este núcleo, que "flutua no espaço mediático", fá-lo "numa estrutura de oportunidade política". Ou seja, ensaiam nos palcos televisivos uma possível reintegração em cargos partidários. Para este politólogo, o papel de comentador garante a continuidade da influência nos partidos e, ironiza, "eles não estão lá porque querem ser comentadores".

Utilizando a televisão como rampa de lançamento para novos cargos políticos ou fazendo do comentário uma arma pro bono, fica por apurar o contributo para o esclarecimento da população.

Estamos a debater melhor?

As crises apuram o espírito crítico e impelem os debates. "É nestas alturas que as pessoas querem pontos de referência, alguém que leia a realidade e que aponte pistas", refere António José Teixeira.

As TV tentaram responder ao repto, como evidencia a aposta que fizeram no comentário político. No entanto, para José Adelino Maltez, as pessoas não estão hoje mais esclarecidas porque há pouco trabalho desenvolvido na passagem de informação "das elites para o povo", o que configura "a grande crise de Portugal". Maltez lê nesta realidade "o perigo de uma explosão social", que só poderá ser evitada se a população for despertada para o gosto de discutir política.

Na mesma linha de pensamento, Rita Figueiras considera que os comentadores não estão a ser capazes de "gerar conhecimento" porque "há um grande efeito de eco" e não uma verdadeira pluralidade de ângulos. Para a investigadora, o esclarecimento público não é maior porque os comentadores utilizam o espaço televisivo como uma extensão da vida partidária, deslocando "o Parlamento para a televisão".

O ex-provedor do Espectador José Manuel Paquete de Oliveira elogia a televisão pela capacidade de alargar o debate político, mas critica a bipolarização do mesmo, referindo-se ao predomínio de comentadores ligados ao PS e PSD.

As horas de comentário político podem ser muitas e os comentadores ainda mais. Porém, investigadores e politólogos partilham de um certo desânimo por considerarem que os comentadores não estão a contribuir para um aumento da consciência política dos portugueses.

"Devíamos estar noutro estado de consciência política", frisa Paquete de Oliveira. "O que é preciso não é pôr outros a pensar pelas pessoas, é dar-lhes dados para poderem pensar", realça Manuel Falcão.

Para António Costa Pinto, os políticos comentadores, que apelida de "neo-Marcelos Rebelo de Sousa", aparecem como "pregadores individuais". O que leva a que, como defende Adelino Maltez, não consigam despertar a população para a política. Para Maltez, falta novidade no comentário político e nem os políticos nem os politólogos, "que também já estiveram na moda", conseguem trazer de volta o gosto pela discussão política. "O que falta são os opinion makers, tipos com pedigree que criam correntes de opinião."

Rita Figueiras acrescenta que a solução passaria por trazer mais académicos para a televisão, procurando chegar a outras esferas intelectuais. Daí viria uma maior diversidade e outros ângulos para "perspectivar caminhos diferentes".

Os directores de Informação dos diversos canais têm uma visão menos negativa. Alcides Vieira, director de Informação da SIC, argumenta que "o comentário não é a verdade das coisas, é a opinião pessoal de alguém sobre os factos" e, nesse sentido, quantas mais opiniões os portugueses tiverem, "melhor podem decidir".

Por seu lado, António José Teixeira, director da SIC Notícias, considera que os comentadores "fazem a diferença" em períodos de incerteza, uma vez que nestes momentos as pessoas precisam de ter pontos de referência para "analisar a realidade com maior rigor".

Audiências: Marcelo é líder indiscutível, Sócrates revela-se desilusão
Treze não parece ser um número de azar para Marcelo Rebelo de Sousa. O ex-líder do PSD é comentador televisivo desde o ano 2000 - primeiro na TVI, depois na RTP1, e desde 2010 de volta à TV de Queluz - mas mantém-se imbatível a captar a atenção dos telespectadores. Nem mesmo a concorrência de José Sócrates na RTP1 causou grande mossa nas suas audiências.

Uma breve análise às audiências mostra que Marcelo é um trunfo. Os dados da GfK disponibilizados pela Marktest/Mediamonitor das últimas cinco semanas falam por si. No dia da estreia de José Sócrates na RTP1, a 7 de Abril, o professor superou o ex-primeiro-ministro, conquistando 1,7 milhões de telespectadores, mais 700 mil do que Sócrates. A RTP1 comprou uma guerra com a contratação de Sócrates, mas que pode não ter valido a pena. Nesta batalha, a TVI tem saído vencedora. Marcelo registou, em média, o triplo da audiência.

A estreia de Sócrates nem começou mal - pelo menos na entrevista, a 27 de Março, que antecedeu a sua "contratação", foi visto por 1,6 milhões de pessoas. Mas quando assumiu as rédeas do seu programa A Opinião de José Sócrates, não conseguiu atingir a barreira do milhão de telespectadores. E no último programa ficou-se pelos 580 mil.

A aposta da RTP em aumentar o espaço dedicado a comentário televisivo trouxe também Nuno Morais Sarmento de volta à vida pública, equilibrando assim o debate PS-PSD. O ex-ministro da Presidência de Durão Barroso, responsável pela tutela da RTP e pelo plano de reestruturação de 2002, estreou-se na RTP1 com uma audiência de 620 mil telespectadores, valor que se tem mantido, nas últimas cinco semanas. Se se comparar as audiências de Sarmento e de Sócrates, o social-democrata ficou mesmo a ganhar em metade dos programas (ver gráfico).

No mercado das transferências televisivas, Marques Mendes foi a grande contratação da SIC este ano, vindo da TVI24. E, até à data, Mendes tem conseguido resultados surpreendentes, sendo o segundo comentador mais visto. Na maioria das vezes, conquistou resultados que rondam um milhão de telespectadores.

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