O homem que viveu depressa de mais

Foto
Na Gulbenkian, em 26 de Abril de 1976 Carlos Lopes (arquivo)

Quem foi Francisco Sá Carneiro? Trinta anos após Camarate, há muitas perguntas por responder. Foi um dos fundadores do regime e emancipou a direita. Desafiou as convenções do país e obrigou-o a aceitar a sua paixão por Snu Abecassis. Tinha pressa e morreu novo. Deixou-nos a tarefa de escrever o seu futuro.

Passava das nove da noite, mas havia uma grande agitação nos corredores da estação de metropolitano do Rossio, em Lisboa. Naquela quinta-feira, 4 de Dezembro de 1980, a Praça D. Pedro IV acolhia o comício de encerramento da campanha para a reeleição do Presidente, o general Ramalho Eanes. Mas se os corredores do metro estavam agitados, a praça estava estranhamente calma e as pessoas a saírem. O comício fora cancelado devido à morte do primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, e da sua companheira, Snu Abecassis, do ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa e da sua mulher, do chefe de gabinete do primeiro-ministro, António Patrício Gouveia, e dos dois tripulantes do Cessna que caíra em Camarate às 20h17. O silêncio e a estupefacção que se sentiam na praça adquiria outros contornos à medida que nos afastávamos do local do comício. O sinal de luto e de respeito que significara o cancelamento do comício não era necessariamente correspondido pelas bases; desse lado da rua, também se viam sinais de regozijo pelo desaparecimento de um homem que partia o país ao meio, um homem ao mesmo tempo amado e odiado, Francisco Sá Carneiro.

Cerca de uma hora mais tarde, em Caxias, nos arredores de Lisboa, este repórter, então estudante universitário, deparava com o lado enlutado da rua portuguesa. Na esplanada do café, às escuras, todos seguiam em absoluto silêncio as notícias na rádio, que ouviam através de duas colunas de uma alta-fidelidade que alguém trouxera de casa. Era impossível exprimir a perda irreparável, inesperada e, no limite, impossível de aceitar para os apoiantes da Aliança Democrática (AD), a coligação entre o PSD, o CDS e o PPM que semanas antes havia renovado a maioria absoluta que já tinham conseguido em 1979.

Francisco Sá Carneiro desaparecia de cena aos 46 anos na misteriosa queda de uma avioneta em Camarate, que a última de oito comissões parlamentares de inquérito classificou em 2004 como atentado. Mas nessa noite de 4 de Dezembro de 1980, a direita portuguesa sofrera algo incomensuravelmente pior do que qualquer derrota eleitoral. Perdera o líder que a emancipara e lhe dera "direito de cidade" no regime saído do 25 de Abril. Trinta anos depois, é isso que sublinha Vasco Pulido Valente, secretário de Estado da Cultura de Sá Carneiro na AD e um dos seus mais próximos conselheiros políticos.

"Francisco Sá Carneiro deu um grande passo para a democratização do regime. Fez uma coisa que foi decisiva depois do 25 de Abril. Levou a direita legalmente para o poder. Deu o direito à direita para governar. A direita foi eleita democraticamente e governou o país serenamente e democraticamente, sem qualquer tipo de perseguições", diz ao P2. "[Sá Carneiro] não chegou a ser derrotado, morreu apenas. Derrotados foram os sobreviventes. Ele ficou uma perpétua possibilidade que nada alterou ou jamais poderá alterar", escreveu Pulido Valente sobre Sá Carneiro, há duas décadas, no PÚBLICO, descrevendo de forma precisa as condições que o transformaram num mito. Nada mudou desde então na visão que tem do advogado do Porto que aceitou ser deputado da Ala Liberal (1969-1973) no consulado de Marcello Caetano, fundou o então Partido Popular Democrático 11 dias após o 25 de Abril (a 6 de Maio) e foi o primeiro político português a governar com uma maioria absoluta. É um dos fundadores do regime democrático.

"Ele faz falta"

"Houve duas pessoas excepcionais na política portuguesa - ele e Mário Soares. Tinham os dois um toque mágico. Sá Carneiro tinha a capacidade de ver realisticamente o estado em que está a sociedade que ele se propõe governar, de apreciar realisticamente os meios possíveis para agir sobre ela", diz o historiador.

Francisco Pinto Balsemão acompanhou todos os passos decisivos da vida política de Sá Carneiro e sucedeu-lhe como primeiro-ministro a seguir à tragédia de Camarate e à reeleição de Ramalho Eanes como Presidente. Liderou a AD durante três anos e negociou a revisão constitucional de 1982 que extinguiu o Conselho da Revolução, reduziu os poderes do Presidente e pôs fim à tutela militar do regime - o Conselho tinha poder de veto sobre todas as políticas governamentais. Eram as principais mudanças pelas quais Sá Carneiro tinha lutado e em nome das quais tinha garantido que não continuaria na chefia do Governo, se o candidato da AD a Belém, o general Soares Carneiro, perdesse as eleições de 7 de Dezembro, como veio a acontecer.

"Eu tinha combinado que sairia com ele, mas depois não tive alternativa se não ficar", diz ao P2, numa conversa por telefone. Balsemão aceitou o papel difícil de suceder a Sá Carneiro e teve um mandato controverso à frente do Governo da AD. Era afinal de contas o último acto de uma relação política iniciada na primavera marcellista, quando os deputados da Ala Liberal acreditaram ser possível mudar o Estado Novo por dentro.

"Conhecemo-nos na Assembleia Nacional. Ficámos sentados ao lado um do outro, éramos companheiros de carteira, porque os deputados sentavam-se por ordem alfabética." Noutra primavera, a de 1974, o programa do PPD seria escrito, num clima de grande euforia, na casa de Balsemão, na Quinta da Marinha. Nessa altura, recorda o militante número 1 do PSD, Sá Carneiro era uma pessoa menos reservada do que nos primeiros anos de Lisboa. Mas os principais traços da sua personalidade permaneceriam os mesmos.

"Era um individualista no sentido em que se achava que devia fazer as coisas, fazia-as, não perguntava a ninguém. No tempo da Assembleia Nacional, aparecia com os projectos todos feitos. Depois, claro, aceitava que se fizessem correcções, não era um ditador", recorda Pinto Balsemão.

"Ele ia para a frente e quem quisesse que o acompanhasse. E isto está muito ligado à sua capacidade de antevisão. Ele via para além do trimestre, projectava-se no futuro dos cenários que estudava e procurava alcançar", afirma. E conclui: "Era uma pessoa com uma enorme coragem moral e física, não tinha medo das consequências das suas opções. Ele faz falta."

E se não tivesse morrido?

O mito de Sá Carneiro não é apenas a consequência de uma morte trágica e da forma frontal como fazia política, preferindo a ruptura, mesmo sendo capaz de consensos, como qualquer outro político. "Era um homem beligerante, apreciava a luta política e tinha uma intuição notável, via rapidamente as contradições a acreditava pouco nas possibilidades de uma via conciliatória. Nisso era a antítese de Mário Soares, que também rompia, mas dava sempre a ideia de ser favorável à conciliação", lembra Rui Machete, militante desde os primeiros tempos do partido e que acompanhou muito de perto Sá Carneiro durante vários anos, até romper com o PSD na altura das Opções Inadiáveis, ao lado de Sousa Franco.

Trinta anos depois, há muitas perguntas sobre Sá Carneiro que continuam à espera de resposta. É como se as suspeitas em torno da sua morte tivessem ofuscado as contradições de uma personalidade enigmática. O que movia Sá Carneiro? O que o levou a trocar a vida confortável de advogado bem sucedido no Porto pelo combate político em Lisboa? O que explicava essa ansiedade permanente, essa pressa, essa necessidade de desafiar o perigo? Como é que um político que se assumira como social-democrata e que queria disputar a Soares os favores da social-democracia europeia se torna o capitão da direita em ruptura com os militares e com o regime? Qual era a sua verdadeira identidade ideológica? Porque é que nunca houve um entendimento político entre ele e Soares? Como é que o líder de um partido conservador, casado, cuja formação cívica começou em grupos católicos assume uma paixão amorosa que levou até às últimas consequências?

Há várias respostas para estas e outras perguntas e todas concorrem para tentar explicar o seu carisma, a sua singularidade e a sua complexidade. Mas o enigma de Sá Carneiro continua a desafiar respostas únicas e, em última análise, é esse o factor que alimenta o mito. E que permite que ainda hoje nos interroguemos sobre que país teria existido se Sá Carneiro não tivesse morrido e o que realmente sobra do seu legado na política de hoje - uma ideia que o colunista do PÚBLICO, Pedro Lomba, sintetizou, em Novembro, no lançamento da biografia do político social-democrata por Maria João Avillez, Francisco Sá Carneiro, Solidão e Poder, quando disse que "o contraste com a classe política deste tempo não poderia ser mais ostensivo".

A imagem do homem impaciente e apressado era captada dentro e fora dos meios políticos. Pedro Passos Coelho, o actual líder do PSD, tinha 16 anos, quando aconteceu Camarate. O Sá Carneiro que ele via da rua era "um homem extremamente afirmativo, que vivia muito intensamente a relação com a política, que parecia ter muita pressa, de algum modo impaciente. Não era um grande orador, mas era cortante no que dizia e ia rapidamente ao assunto e fazia da confrontação directa, até agressiva, um dos traços mais marcantes da sua comunicação política", diz ao P2. O eurodeputado Paulo Rangel ainda era mais novo nessa altura - tinha 12 anos a 4 de Dezembro de 1980. "Cresci no seio de uma família que, politicamente, depois do 25 de Abril, se definiu desde o início como sá-carneirista. Não éramos pê-pê-dês, éramos sá-carneiristas, o que explica que, em cada ruptura ou cisão, ficássemos sempre do lado dele. Sá Carneiro não era apenas um líder admirado, era um líder amado", refere Rangel, em declarações por correio electrónico.

O lado aristocrático

Quem acompanhou um líder que muitos consideravam inconstante, destaca, pelo contrário, a sua fiabilidade. José Medeiros Ferreira fora ministro dos Negócios Estrangeiros no primeiro Governo do PS, em 1976-77, mas esteve com Sá Carneiro em 1979, quando o movimento dos reformadores - onde estavam também António Barreto e Francisco Sousa Tavares - foi uma espécie de "ala esquerda" da AD.

"Sá Carneiro não queria ficar prisioneiro da direita", diz o historiador. "Sendo emotivo, tinha métier político, uma coisa mais rara do que se pensa. O que ficava estabelecido era executado, era uma personalidade fiável." Carismático? "Não há carismáticos à partida e é o poder que faz isso, mas ele foi-o. Achava-o voluntarioso e determinado." Como Pulido Valente, compara-o a Soares, mas noutros termos: "O melhor animal político do regime é Soares; depois, em segundo lugar, Sá Carneiro, mas não era a mesma coisa. Havia um lado importante - as coisas eram mais transparentes, ele não dissimulava. A arte da dissimulação é uma arte católica portuguesa. Os grandes talentos políticos portugueses são dissimulados e Sá Carneiro não era dissimulado."

Talento e confiança são as palavras que Vasco Pulido Valente escolhe para resumir uma relação política muito próxima com Sá Carneiro. "Tinha uma grande confiança nele. Era muito educado; tinha lido muito, sobre arte, sobre história, sobre arqueologia, sabia imenso sobre arqueologia e da sua profissão, era um bom advogado. Era uma pessoa segura de si própria. Tinha um grande talento político. E não era uma pessoa fechada, pelo contrário."

Rui Machete encontrava-lhe um lado aristocrático: "Apreciava as boas coisas da vida, um bom vinho, uma boa comida, uma boa conversa. Era muito aristocrata na sua maneira de ser e de viver." Para o antigo ministro da Justiça do Bloco Central, Sá Carneiro "não era um conservador típico. Vive rapidamente, urgentemente, impacientemente".

Esse sentimento de urgência, essa premonição de que iria morrer cedo são descritos por Maria João Avillez na sua biografia de Sá Carneiro - que a autora relaciona com o acidente de viação que sofre em 1973 e com a doença que o obriga a sair do país em 1975. Rui Machete testemunhou este sentimento numa conversa que teve com Sá Carneiro. "Ele disse-me um dia isto: "Você não tem a experiência do que eu vivi. Eu estive praticamente do lado de lá e agora cada dia que passa é um dia que eu vivo com prazer, que eu tenho de apreciar, porque é uma oportunidade." E isso dá-lhe uma sensação de urgência."

Contra a maré

Há três momentos-chave na vida política de Francisco Sá Carneiro. O ponto comum a todos eles é terem sido interrompidos antes de chegarem ao fim. Primeiro são os três anos como deputado à Assembleia Nacional. Sai quando compreende que a mutação do regime é impossível. Em 1974, age com tremenda rapidez e monta o então PPD num ápice. Torna-se o principal apoio do primeiro chefe do Governo do pós-25 de Abril, Adelino da Palma Carlos. Mas demite-se com o primeiro-ministro e o Governo cai, sem poder para impor a eleição presidencial de Spínola nesse mesmo ano, numa tentativa de inverter o calendário estabelecido pelo MFA. O terceiro é a efémera maioria absoluta da AD. Pelo meio, há um período de desânimo e afastamento, entre 1974 e 1975 e um combate dentro do PSD. Em cada um desses três momentos, Sá Carneiro lutou contra a maré. Em 1979, mesmo depois de ter alcançado a maioria absoluta, tinha pela frente um obstáculo que não teria conseguido superar e que condicionava todo o seu projecto político: a reeleição de Ramalho Eanes e, com ela, a continuidade no poder dos militares.

Depois de 1974, o seu grande rival político era Mário Soares, com quem partilhou as profundas reservas quanto ao papel dos militares e que não acompanhou o PS no apoio a Eanes nas presidenciais de 1980. O entendimento entre ambos esteve mais do que uma vez na mesa, mas nunca se concretizou. "Sá Carneiro teria sempre dado prioridade ao PS para fazer um governo de maioria", relembra Pinto Balsemão. Mas os militares e Eanes eram a nemésis do líder social-democrata.

"O verdadeiro gargalo político [da AD] foi esse", afirma Vasco Pulido Valente. "Eu não achei até certa altura impossível que Eanes e Sá Carneiro se entendessem para tirar os militares do poder. Quando ganhámos em 1979, opus-me ao confronto imediato com ele." Para o historiador, "Eanes é um conservador, mas é um militar. Não se deixam soldados mortos no campo de batalha. No fundo, queria proteger os amigos e que não houvesse represálias. Queria tirar o exército da política, mas não sabia como o fazer".

Eanes não gostava de Sá Carneiro. Num depoimento ao Expresso, publicado há uma semana, classificava-o de "tacticista". Disse ainda ter temido pela sua vitória eleitoral, quando soube da queda da avioneta. Mas foi o contrário que aconteceu, apesar da tentativa de transformar o funeral de Sá Carneiro, na véspera da eleição, num acontecimento mediático para manter vivas as chances do general Soares Carneiro - que, segundo Vasco Pulido Valente, era uma excelente pessoa mas tinha "o encanto político de uma lista telefónica". Sem Sá Carneiro, desaparecia o núcleo que mantinha coesa a AD.

"Aquilo não era uma coligação. Era a autoridade do Sá Carneiro a cem por cento, o Diogo Freitas do Amaral acabou por ser um discípulo. Era um grande organizador e pôs aquele Governo a funcionar", lembra Pulido Valente. "Sá Carneiro era o cimento e a locomotiva da AD", diz Pinto Balsemão.

Medeiros Ferreira esteve com a AD até às legislativas de 1980, mas apoiava Eanes, que acompanhará depois no partido eanista, o PRD, em 1985. E tem outra perspectiva sobre o conflito entre Sá Carneiro e os militares. "Ele sabia que a AD ia ter a vida negra com o Eanes, a não ser que ele fizesse uma negociação. E não se entendeu com Eanes até 1980, porque pensou que o podia derrotar", afirma o historiador, para quem não é claro que o líder da AD viesse a deixar o poder a seguir às presidenciais. "Sá Carneiro usou a questão da disputa entre o poder civil e o poder militar para ser eleito; não sei se iria manter essa disputa depois. Admito que como ia haver uma revisão constitucional em 1982 isso poderia ser negociado."

"Ele atira à cabeça da figura social mais odiada pela direita nessa altura, que é a instituição militar que fez a revolução. Com ele, teria havido uma transição democrática, civil. Fica muito irritado com o incidente do 25 de Abril, o cálculo dele era outro, estava à espera de uma solução mais à espanhola", prossegue Medeiros Ferreira. "Ele desconfiava muito dos militares, desde o princípio. Ele corporiza muito uma ideia de restabelecimento de uma vida política normal, democrática, um não rompimento bruto em relação ao Ultramar", diz Rui Machete.

Machete lembra a entrevista que Sá Carneiro fez para o Expresso em 1975 - que acabaria por não ser publicada pelo semanário, uma vez que Sá Carneiro, então a viver em Espanha, escrevera as perguntas e as respostas, como recorda Miguel Pinheiro na biografia Sá Carneiro - na qual ataca os militares moderados do grupo dos Nove. Afastado de Portugal, ele parecia não compreender a relevância do grupo de Melo Antunes, Vasco Lourenço e Vítor Alves para conter a esquerda radical dentro do exército. Para Medeiros Ferreira, a razão desse ataque - que depois seria amenizado - era outra: "O grupo dos Nove, pela sua moderação, era um concorrente directo de Soares e de Sá Carneiro, por muito que se aliassem circunstancialmente contra o gonçalvismo. Tanto Soares como Sá Carneiro viam com maus olhos a perpetuação do poder militar, mesmo que fosse moderado. Ou sobretudo se fosse moderado, porque era concorrente." Os dois temiam que o regime evoluísse para um socialismo militar terceiro-mundista e partilhavam um europeísmo convicto e o mesmo modelo de democracia parlamentar.

O ano da descrença

O Sá Carneiro que passa grande parte do ano de 1975 em San Pedro de Alcantara, no Sul de Espanha, está a sair de um período de depressão e de descrença em relação ao futuro do país. Está longe de Portugal durante grande parte do ano de 1975. São Rui Machete e a mulher quem o convencem a vir votar nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 1974, quando Sá Carneiro estava em Londres. "A minha mulher transmitiu-lhe o que eram as expectativas das pessoas que acreditavam nele e que ele iria defraudar. Disse-lhe que ele era cobarde, coisa que ele não era, fisicamente até exagerava um pouco."

É um Sá Carneiro abatido que encontram, o oposto da imagem do líder combativo. "Essa depressão foi muito motivada pela doença e ele estava sob grande influência do seu irmão Ricardo, que na altura achava que o país estava perdido e que a sobrevivência em termos de liberdade passava por reconstruir a vida no Brasil. Ele estava muito inclinado a isso."

Sá Carneiro fica em casa de Rui Machete, quando vem votar nas eleições de 1975, onde recebe a visita dos pais: "Há uma reconciliação e nota-se muito, particularmente a mãe, que era uma pessoa muito conservadora. Tinha uma relação difícil com o pai, por motivos profissionais. O membro da família com quem ele se dava mais intensamente era o Ricardo. A sensação que tive é que naquela conversa deve ter havido muita influência do seu meio do Porto, da sua vida anterior, porque ele vivia uma vida completamente diferente."

Pressa de viver

Em Janeiro do ano seguinte, dá-se o acontecimento que vai mudar a vida afectiva de Sá Carneiro: conhece Snu Abecassis e, como descrevem as duas biografias do político, é o coup de foudre: uma paixão que o ligará até ao fim à editora dinamarquesa, que vivia em Lisboa desde 1962 e lançara as Publicações D. Quixote em 1965. Relação que ele assumirá com uma frontalidade total, independentemente dos custos políticos que pudesse vir a pagar.

O homem que tem pressa é um homem em mudança. Encontra em Snu a tranquilidade e um universo cosmopolita que o seduz. Continua a ter pressa de viver cada dia.

"A doença fê-lo mudar de mentalidade. Ele era uma pessoa muito radical", recorda Francisco Pinto Balsemão. "A Snu fê-lo mudar para melhor, ele mudou através dela. Evoluiu, abriu-se mais para a vida, estava melhor com ele próprio." O que o leva a assumir a ruptura, agora no plano familiar? "Pela mesma razão de sempre, se achava que o devia fazer, ia em frente", responde Balsemão.

Lisboa mudou o advogado da Foz que crescera a passar férias na Granja e construíra uma quinta em Barcelos? Vasco Pulido Valente diz que não: "Ele seguiu sempre as suas raízes até às últimas consequências." Rui Machete acha que Sá Carneiro "foi sempre marcado por um certo provincianismo nalguns aspectos de que nunca conseguiu libertar-se. E Snu Abecassis ajudou-o muito". Mas para o advogado e antigo presidente da FLAD, há duas outras mulheres incontornáveis na história de Sá Carneiro na capital: Conceição Monteiro, a secretária e o apoio de todos os momentos, e a poetisa Natália Correia. Foi Natália quem, num almoço no restaurante Tavares, falou a Sá Carneiro da "princesa nórdica" que estava à espera de um príncipe, que era ele. Era no Botequim, o bar de Natália na Graça, que Sá Carneiro se envolvia de outra forma na vida nocturna de Lisboa. "A Natália Correia foi uma espécie de deus ex-machina, há algum deslumbramento dele que resulta de algumas sessões nocturnas em que se discutiam política, literatura, porque isso era uma novidade que contrastava muito com a experiência anterior. Ela e a Conceição sentiam que ele precisava de respirar de uma maneira mais aberta." E acrescenta: "[Sá Carneiro] É um personagem trágico, as pessoas que o rodeiam têm alguns aspectos shakespeareanos."

Snu acompanhou-o até ao fim, até ao voo fatídico. Quantas vezes vamos ouvir perguntar ainda: o que teria acontecido, se eles tivessem seguido para o Porto, para o comício final da campanha de Soares Carneiro, no avião da TAP? Muitas vezes antes ele escolhera voar, mesmo quando as condições de segurança não estavam garantidas, tal como guiava sempre demasiado depressa. Duas convicções prevalecem até hoje - acidente ou atentado contra Amaro da Costa. O processo poderá ser reaberto em sede parlamentar, segundo admitiu esta semana Passos Coelho, no lançamento do livro Camarate Um Caso em Aberto, de Freitas do Amaral. Nada disso acrescenta o que quer que seja às duas perguntas que sobraram para o futuro: o que teria ele feito depois da derrota de Soares Carneiro e o que resta hoje da marca que deixou no país e, sobretudo, no partido.

O último combate

Depois de conquistar a segunda maioria absoluta da AD, Sá Carneiro parte para o seu último combate com uma estratégia de tudo ou nada: ou o seu candidato vence as presidenciais, ou ele deixa o poder. Estratégia de alto risco? Vasco Pulido Valente diz que não. "Não era uma aposta de risco, era uma aposta muito prudente. Imagine o Sá Carneiro continuar a primeiro-ministro, o que lhe aconteceria a seguir? Tinha tudo tapado, sem possibilidade de reformar o Estado e à mercê do veto político do Conselho da Revolução que o podia pôr na rua por uma ninharia qualquer que o humilhasse." Ao mesmo tempo, a estratégia do tudo ou nada era um beco sem saída: "Quando chega ao fim do jogo, não pode dizer ganhámos, mas agora não podemos continuar a jogar com este presidente do clube."

Depois das presidenciais "ele saía e ficava com o prestígio e o poder; e mais adiante voltaria", diz o então estratego da AD. Faria um partido novo, continuaria no PSD, conseguiria antecipar a liberalização política e económica do regime pela qual se bateu e que só ficou concluída na revisão constitucional de 1989? O historiador Rui Ramos tenta esse exercício, num ensaio na última edição da revista do Expresso, antecipando uma radicalização que teria posto em causa o Bloco Central. Os exercícios de adivinhação valem o que valem; mas, em qualquer cenário, teria sido plausível vê-lo candidatar-se às presidenciais de 1986, que Freitas do Amaral disputou. Essa campanha foi a última expressão do espírito da AD de Sá Carneiro.

E o que sobra de Sá Carneiro no PSD de hoje? Cavaco, o ministro das Finanças de Sá Carneiro, teria sido o primeiro-ministro Cavaco Silva, se Sá Carneiro fosse vivo? Cavaco destruiu o partido de Sá Carneiro, como defende José Miguel Júdice? Pinto Balsemão acha que não é possível comparar épocas distintas: "É outra fase, a história não se repete." Pedro Passos Coelho diz que o partido "tornou-se mais institucional, quando o PSD de Sá Carneiro era quase o partido da contra-revolução, do 25 de Novembro que lutou por desfazer todos os excessos que vinham do Verão de 1975 e que eram um tabu nessa altura. Isso deu a Sá Carneiro um cunho iconoclasta que hoje não está presente no PSD".

Hoje ainda há quem diga ao líder do partido o que Sá Carneiro teria feito numa dada situação, mas é uma memória menos presente. "Isso sobrevive nas pessoas mais antigas, mas hoje alguém até aos 40 anos não tem qualquer memória vivida dele", diz Passos Coelho. Paulo Rangel considera que a marca do líder carismático sobrevive "no carácter quase sebastiânico da expectativa das bases em face das lideranças. Esse lado carismático - muito potenciado pela lógica da ruptura e da clarificação - também ajuda a explicar a vertente conflitual, consumidora e por vezes autofágica do partido".

Em 30 anos, os tempos, as circunstâncias, as ideias mudaram. Demasiado depressa, mesmo para um líder que viveu demasiado depressa. "A referência ao Sá Carneiro é hoje muito mais ritual e de bom-tom do que verdadeiramente vivida, pelo menos pela maioria", diz Rui Machete.

O que sobra de Sá Carneiro, 30 anos depois de Camarate? A um outsider a palavra final. "Os tempos difíceis fazem os grandes líderes", responde Medeiros Ferreira.

Estamos a viver tempos difíceis?

Sugerir correcção
Comentar