O governo bom e o governo justo

Porque é que um governo bom não é necessariamente um bom governo? Este jogo de palavras a propósito do governo “bom” e do bom governo dá-nos entrada numa das principais questões da ética social. De facto, não compete aos governos das sociedades pluralistas que, felizmente, somos ter competência sobre a “bondade” das políticas. Aos governos compete ser justos, pois é justiça, e não a bondade, que faz um bom governo.

Um pouco de história mostra-nos a pertinência da questão. Os governos pré-modernos tinham a pretensão de ser competentes quanto à bondade ou maldade das políticas. Neste caso, a regulação da vida cívica e política era decalcada de uma ética. As revoluções modernas tentaram ultrapassar este problema e conseguiram-no, pelo menos em parte, quando separaram a religião da política e asseguraram a laicidade das instituições. A ética deixou de mandar no direito, pelo menos directamente. Mas esta tentação é tão antiga como o mundo. Os regimes totalitários, tanto de direita como de esquerda, caem sempre de novo nesta tentação de fazerem política impondo a todos aquilo que é visto como “bom” para a sociedade.

Mas podemos ir um pouco mais longe e perguntar se esta questão está suficientemente resolvida nas sociedades pluralistas e democráticas em que vivemos. Não será que os nossos governos continuam a fundar-se numa ideia de “bondade” quando planeiam os programas educativos, os programas de saúde, a própria fiscalidade? A nosso ver esta confusão entre bondade e justiça continua a ser um problema nas nossas democracias.

É por isso que uma progressiva superação da competência do Estado em matéria de ética se apresenta como um dos principais objectivos da convivência democrática. A afirmação pode parecer estranha e mereceria grandes desenvolvimentos. De forma breve, dizemos o que se trata de afirmar é que o governo bom é aquele que se funda na justiça e que recua, deliberadamente, na definição da bondade. À regulação das instituições é necessária a justiça, vista como arte de dar a cada pessoa e a cada grupo aquilo que lhe é devido: a igualdade perante a lei, a igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos e liberdades. Tudo o resto, ou seja, o que é bom e que é mau, é de outra ordem, a ordem ética, e não tem relevância política imediata.

Reparemos que esta distinção é fundamental para mantermos o pluralismo democrático. As pessoas concretas e os grupos sociais têm as suas ideias sobre o que é bom e o que é mau, professam convicções espirituais e éticas que fazem a riqueza cultural dos povos. Ao bom governo compete respeitar todas essas convicções vividas pacificamente e abster-se de impor injustamente as convicções de um grupo a todos os outros grupos.

A democracia do futuro assentará sempre mais nesta distinção entre o bom o justo. Educar, curar e cuidar, respeitar a Terra, viver em família, supõem ideias éticas que não são competência directa do Estado. O bom governo será aquele que se funda na justiça e se abstém de impor a bondade.

Docente da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto. O autor escreve segundo o Acordo ortográfico

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