O fantasma de um 2011 passado

“A memória longínqua de uma pátria Eterna mas perdida e não sabemos Se é passado ou futuro onde a perdemos” Sophia de Mello Breyner Andressen, Poemas de um livro destruído

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Rui Gaudêncio

A luz do dia vai e volta, na cúpula de vidro do Parlamento. Há nuvens a sério no céu e uma, metafórica, na sessão plenária especial que debate “o estado da nação”.

O passado ensombra o presente. Pior: o presente alimenta-se do passado. Como um disco riscado, aquele ano vai e volta, repete-se. Passos, para Seguro: ”Estranho bastante ouvi-lo dizer que tudo começou em 2011.” Seguro, para Passos: “O seu Governo tomou posse há três anos e nesses três anos o senhor destruiu três gerações de portugueses.”

Neste jogo de sombras, sobre um passado com pouca memória, Pedro Passos Coelho apresenta-se como alheio aos acontecimentos dessa época e António José Seguro  tem de medir as críticas que faz para dentro com aquelas que, na Assembleia da República, pode verbalizar.

No debate interno do PS, 2011 é um tema sensível. Seguro já o dissera, numa entrevista: “Se eu negociasse o memorando (…) era este o memorando que tinha negociado? Claro que não era.” As críticas do líder do PS à forma como o seu partido geriu a vinda da troika fazem ricochete, no plenário. Passos usa uma ironia cortante: “Tenho concordado com as suas observações.”

O primeiro-ministro concorda com o líder socialista sobre a troika? Nem por isso. Seguro considera que “o grande erro” do Governo foi ter excedido a austeridade necessária. O que Passos Coelho queria salientar é outra coisa: ambos coincidem nas críticas a Sócrates. 

Só que Seguro nunca o disse, e não deve dizê-lo: “Um líder do PS não enjeita nenhuma da história do partido”, afirmou, nessa entrevista à Radio Renascença. E Passos, percebendo a margem curta do seu adversário não hesita. “Foi o Governo do seu partido que…” - e aqui entra tudo, da troika aos cortes nas pensões, da austeridade à dívida.

O papel de Passos Coelho na vinda da troika não foi o de um observador distante. Mas quem o ouvisse no debate parlamentar de ontem, encontraria um político orgulhoso de ter “mandado embora” uma troika que, há três anos, acolheu com simpatia.

No discurso do primeiro-ministro, a história é diferente. Estes foram “três anos muito difíceis”, passados a “resolver os problemas criados pela política da irresponsabilidade”, mais à frente também chamada de “política do facilitismo”. “Sabemos qual era o ponto de partida há três anos”, prosseguiu o primeiro-ministro. Era um período de “emergência”.  Passos Coelho enfatiza tanto que acaba por se enredar em frases como esta: “Os problemas que os portugueses tiveram que passar para resolver o problema.”

Há um problema? Houve um problema. Agora estamos, nesta perspectiva do PSD, no fim de um “caminho feito de suor e lágrimas”, acrescentou Feliciano Barreiras Duarte. Antes havia uma “trajectória de colapso”, feita de “ideias mirabolantes” por “políticos encantatórios” num “sonho funesto”. Barreiras Duarte continuou, falando de 2011 e do “colapso socialista”, das “poções milagrosas” que os seus adversários propõem “aos incautos”. Mas ainda não é hoje que, garante o deputado, se fará “o balanço da sedução socialista”. 

As imagens são estas. A política convoca palavras da metafísica. Os discursos mais do que analisar, persuadir, querem esconjurar.

“Passaram três anos e duas semanas desde que o actual Governo de direita tomou posse”, historia Alberto Martins, do PS. De seguida, uma série de números: desemprego, dívida, prestações sociais. Para o PS, o Governo “não ajudou a transformar estruturalmente nada”, apenas beneficia “das transformações realizadas no passado”.

O estado da nação, no dia 2 de Julho de 2014 parece ter pouco a acrescentar ao que eram as querelas daquele tão evocado Maio de 2011, quando a troika veio e Sócrates saiu. E é por isso ser uma falsidade tão evidente que se percebe tão mal um debate como este.

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