O documento dos doze economistas: pontos positivos, omissões e dúvidas I

Este relatório tem como principal vantagem o facto de apresentar uma visão ideológica alternativa à do actual governo.

O documento Uma Década para Portugal, elaborado por doze economistas para o Partido Socialista (PS), apresenta um elenco de propostas (e os seus previsíveis impactos económicos) que o partido poderá levar a cabo na próxima legislatura, caso vença as eleições legislativas. É possível que o PS não venha a adoptar todas as medidas descritas neste documento, mas é certo que a maioria virá a constar do futuro programa eleitoral socialista. Interessa, por isso, perceber quais destas propostas podem ser consideradas positivas do ponto de vista de um partido de centro-esquerda e quais os aspectos que levantam questões de congruência ideológica.

Este relatório tem como principal vantagem o facto de apresentar uma visão ideológica alternativa à do actual governo: vem propor de forma clara o fim da lógica de redução dos rendimentos das famílias e a valorização do papel do Estado na criação de condições de desenvolvimento económico, o que é, em geral, uma linha política subscrita por toda a esquerda e destrói a máxima do there is no alternative que tem marcado o discurso político.

Esta matriz parece ser herdeira do pensamento económico que marcou os partidos sociais-democratas pelo menos desde o final da II Guerra Mundial até aos anos 90. Algumas das medidas apresentadas, como o fim da sobretaxa do IRS, a reposição dos salários da função pública, a reposição das condições e valores das prestações sociais não contributivas (RSI, CSI ou Abono de Família) vêm aumentar o rendimento disponível das famílias, o que se espera que leve ao aumento do consumo privado. A partir daqui o raciocínio é conhecido, pelo menos desde Keynes: mais consumo levará ao aumento do investimento das empresas, que terão expectativas de vender mais; o aumento do investimento privado gerará maior criação de emprego e maior crescimento económico; tudo isto permitirá reduzir o défice e a dívida. Ou seja, o que se propõe é a substituição do “ciclo vicioso” por um “ciclo virtuoso”, na senda do que a social-democracia tradicional nos habituou.

A proposta de criação do complemento salarial anual, uma prestação social que venha abranger a população que, apesar de inserida no mercado de trabalho, não consegue que os seus rendimentos salariais cheguem a um valor equivalente ao salário mínimo — por só conseguir encontrar emprego sazonal, ou em part-time, por exemplo , é a repescagem de uma ideia de 2009, que também vem nesta direcção do aumento dos rendimentos das famílias. Além disso, introduz alguma justiça no sistema de prestações sociais, uma vez que, até aqui, um trabalhador pobre não podia, precisamente por trabalhar pontualmente, usufruir de quaisquer outras prestações sociais. Mesmo que não tenha um valor extraordinário, esta medida virá melhorar o nível de vida de uma faixa da população que se encontra hoje numa situação bastante vulnerável, seguindo uma preocupação típica do socialismo democrático.

A reposição do imposto sucessório (sobre heranças acima de um milhão de euros), a maior tributação da propriedade, ou a travagem na descida do IRC, são igualmente medidas que demonstram pretender atingir uma maior equidade fiscal, admitindo vir a tributar mais a riqueza de quem mais tem. No entanto, é precisamente ao nível da fiscalidade que notamos a ausência de uma medida que seria emblemática num governo programático socialista: para além do fim do quociente familiar, não é apresentada outra proposta que procure aumentar a progressividade do IRS, nomeadamente a reposição dos anteriores escalões, eliminados por este governo. E ficamos sem saber por que razão esse caminho não é seguido.

Do mesmo modo, não há qualquer referência ao aumento do salário mínimo, uma medida que será sempre vista por um partido de centro-esquerda como uma das principais formas de aumentar o rendimento das famílias. Claro que ninguém esperaria propostas radicais, mas não é expectável que os socialistas governem uma legislatura sem procurarem aumentar o valor do salário mínimo, que se sabe ter impactos em toda a estrutura de remunerações. Por isso, não se percebe a ausência desta ideia neste documento.

Uma outra omissão importante neste relatório tem que ver com o facto de não ser apresentada uma medida abrangente de combate à pobreza entre as crianças e jovens. Esta é a principal chaga social do Portugal contemporâneo e é uma das prioridades de António Costa na sua Agenda para a Década. Teria sido importante explicar desde já aquelas que podem vir a ser as linhas concretas desta política, que será central para qualquer governo de centro-esquerda neste momento.

Tudo isto poderá vir ainda a constar do programa eleitoral do PS, mas são aspectos que se estranha não terem sido abordados neste estudo. Quanto à falta de referência sobre a renegociação da dívida pública, as alterações ao nível da TSU e o novo modelo de contratação laboral, estas são questões que levantam dúvidas por poderem ser ambíguas do ponto de vista ideológico. Iremos tratá-las no próximo artigo.

Politóloga, IPP TJ-CS e UBI

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