O arroto e a boa contaminação

O caso Sócrates pode e deve contaminar as próximas eleições legislativas.

Manuel Maria Carrilho deu uma entrevista ao DN com uma tese provocadora: o PS deveria expulsar José Sócrates do partido, pois essa seria a única forma de os socialistas se redimirem aos olhos do país. As reacções, como seria de esperar, não demoraram. José Lello (quem mais?) acusou Carrilho de “propor uma espécie de violência doméstica no seio do PS”, e Isabel Moreira lembrou que “nem um condenado perde direitos políticos”, enquanto descia ao nível gasoso da eructação: “Esta opinião arrotada não traz qualquer embaraço para o PS mas para quem a arrota.”

Contudo, da mesma forma que um condenado não perde direitos políticos, também um homem com um comportamento abjecto na forma como tem reagido publicamente às acusações de violência doméstica não fica diminuído na sua liberdade de expressão, nem perde o direito a que os seus argumentos sejam analisados por aquilo que eles valem, e não pelo carácter de quem os profere. Ora, o argumento de Carrilho toca num tema essencial, e ainda não devidamente discutido: até que ponto existe uma cumplicidade do PS em relação às acções de Sócrates, e até que ponto o partido falhou na protecção do interesse público ao apoiar caninamente um secretário-geral e um primeiro-ministro com o seu perfil.

Ainda esta semana o jornal i trouxe a público mais um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, desta vez em resposta a um recurso de Carlos Santos Silva, que arrasa a defesa de José Sócrates de uma ponta à outra. É evidente que a justiça segue o seu rumo, com as suas regras, mas há aqui um óbvio ululante: os argumentos apresentados pelos advogados de defesa são de tal modos estapafúrdios e implausíveis (o último, então, de que Sócrates só recebia dinheiro vivo por falta de confiança no sistema bancário é de morrer a rir) que é absolutamente ridículo achar que qualquer julgamento político sobre o comportamento de Sócrates e do PS deve ficar em suspenso até ao trânsito de uma sentença em julgado.

Como afirma Luís Rosa, director do jornal i, em editorial: “São três tribunais e 11 juízes a dizer o mesmo. Onze cabeças diferentes, homens e mulheres, progressistas e católicos, juiz de direito, desembargadores e conselheiros: a argumentação da defesa de Sócrates não faz sentido.” Só que depois de afirmar isto, Rosa avança com aquela que é a tese habitual sempre que há um caso de justiça envolvendo figuras destacadas de partidos em vésperas de eleições a de que há um risco de contaminação política e de que essa contaminação é indesejável. Escreve o director do i: “A procuradora-geral terá de ponderar juntamente com o DCIAP se vale a pena correr o risco de ser acusada de politização ou se se deve produzir a acusação só depois das eleições. Eis um bom caso para a razão de Estado ser devidamente ponderada e valer mais que as razões meramente judiciais.”

De um modo geral, esta é uma tese avisada mas não no caso de José Sócrates. Aquilo de que o ex-primeiro-ministro é acusado é demasiado grave para que o PS se possa dar ao luxo de não ser confrontado com o seu fantasma, sobretudo quando a actual direcção ascendeu ao poder assumindo orgulhosamente o passado socrático e cheia de vontade de reabilitar a sua figura. O caso Sócrates pode e deve contaminar as próximas eleições legislativas. O que não faz sentido é fingir que não há um elefante no meio da sala: ele está lá, partiu a mobília toda, e ainda é acusado de ter levado alguma para casa. O PS não tem de responder por isto? Claro que tem.

Jornalista; jmtavares@outlook.com

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